Dança como produção de conhecimento
As propriedades formais e relacionais da dança conquistam existência pela conjunção e articulação de questões provenientes de vários saberes. Pensar suas produções artísticas como uma área de convergência entre questões poéticas, históricas, políticas, biológicas, cognitivas e comunicacionais, torna-se, portanto, premissa para o estabelecimento da reflexão aqui pretendida. O desafio de definir os domínios da dança, sem restringir sua complexidade em um único saber, apresenta, no mínimo, dois problemas estruturais. O primeiro deles diz respeito ao entendimento usual acerca das delimitações epistemológicas, ou seja, a produção do conhecimento pela definição de protocolos de verificação que permitam a categorização de dados e fatos estáveis, visando uma previsão controlável de um objeto qualquer. Mas como predizer os caminhos e as relações futuras de um objeto cuja especificidade abriga, predominantemente, o traço da mutabilidade? O segundo se relaciona à tendência de se confinar o conhecimento já produzido pela área em disciplinas, encerradas num domínio exclusivo regido por regras destinadas a impedir sua própria transgressão. Então, como acomodar o propósito primeiro de toda e qualquer manifestação artística de criar outras realidades possíveis? Ou, como impedir a arte de transformar ativamente o real, na medida em que propõe outros modos de existência que ainda não estão operando no mundo? Frente a estes problemas, uma outra questão se impõe: Como delimitar, de modo absoluto, as fronteiras de uma área de conhecimento que carrega a indisciplinaridade em sua constituição intersistêmica?
Embora pensar a arte e, conseqüentemente, a dança como área de produção de conhecimento seja uma preocupação surgida na passagem do séc. XVII para o XVIII, quando, juntamente com a criação das
Academias Reais de Arte, todo um léxico foi desenvolvido, atribuindo à aristocracia a competência de reconhecer, e analisar, esta forma “elevada” de conhecimento, no Brasil, ainda nos debatemos com tal assunto.
Contudo, a descrição desta linguagem pede pela utilização não de um, mas de vários instrumentos teóricos, necessários para a confecção de uma análise condizente com sua complexidade, ou seja, instrumentos capazes de produzir uma formulação mais abrangente acerca das relações estabelecidas pelos processos de produção de sentido nela midiatizados.
Estudos sobre a evolução e a configuração da cognição humana produzidos por pesquisadores das Ciências Cognitivas nos ensinam que os processos de construção e aquisição do conhecimento ocorrem pela negociação entre uma multiplicidade de informações que, em grande parte, são transmitidas pelos neurônios e hormônios, sendo que, estes agentes, na mesma proporção em que realizam tarefas específicas, também se disponibilizam para outras conexões possíveis. Talvez tenhamos algo a aprender com o modo como se dá o processamento das informações no e pelo corpo. O trânsito colaborativo entre elas sugere a possibilidade da construção de outras concepções epistemológicas, onde demarcações territoriais não teriam lugar, não cabendo ao conhecimento a apresentação de passaportes.
O filósofo Karl Popper, em
O cérebro e o pensamento (1992), propunha que todo conhecimento se origina de um conhecimento prévio. Mas, sem dúvida, utilizar o conhecimento existente e abandonar a clássica idéia de prova e verdade requer o questionamento e a revisão de antigos métodos. Entender a dança não somente como produto artístico, mas também como área de produção de conhecimento, implica no reconhecimento de que ela é capaz de descrever e analisar seus próprios objetos. Isto, obviamente, envolve a solução dos problemas levantados anteriormente, mas cabe lembrar que as soluções possíveis sempre serão transitórias, pois o conhecimento produzido por qualquer área do conhecimento não está livre da ação do tempo.
A Idéia de Movimento
Uma abordagem evolutiva sobre
a idéia de movimento em dança, obviamente, está condicionada às ocorrências que conseguiram conquistar estabilidade ao longo de sua história, permanência devida não só à eficiência replicadora das discussões e dos questionamentos produzidos acerca de suas propriedades formais e relacionais, mas também pela co-determinância entre seus produtos e o ambiente sócio-cultural no qual emergiram.
A investigação de uma linhagem possível das idéias que conquistaram permanência pode fornecer índices que favoreçam o entendimento da amplitude das interações presentes nesta linguagem. Sob esta perspectiva, a arte de dançar pode ser considerada tão antiga quanto os processos de especialização do movimento, implementados no corpo que dança; e este tem sido, até então, seu paradigma axial, ou seja, dança é movimento.
A síntese destas tendências e as conseqüentes formulações da idéia de movimento podem ser detectadas pelo exame dos diferentes períodos históricos. O questionamento do ideário
Barroco inaugurou o entendimento de que o movimento é capaz de carregar e comunicar seus significados, não necessitando de adornos ou adereços para se configurar como linguagem. A proposição de que forma e sentido co-habitam o movimento (na terminologia do séc XVIII, técnica e expressividade) se estabiliza. Já no Romantismo, mais especificamente entre 1830 e 1850, a perseguição de uma maior precisão formal e do conhecimento necessário para promovê-la geram massivos investimentos em questões técnicas, produzindo o
Balé de Elevação. Contudo, há um tributo a ser creditado a tal empreendimento. Neste período um outro entendimento conquista estabilidade, ou seja, o corpo que dança tem que ser capaz de manipular o movimento.
Esta busca pela leveza do movimento, gerada para atender a demanda da transcendência, acaba negligenciando a inerente questão que permeia toda a história da dança, ou seja, a inseparável conexão entre forma e sentido, questão enfaticamente retomada pelo
Balé Moderno, que problematizou os modelos coreográficos consolidados ao se contrapor ao excesso de formalismo que o
Balé Romântico havia atingido. Neste período, observa-se a proposição de que a ação de dançar não se restringe à mera junção de passos, e que o movimento é um meio de expressão de significados, condicionados a princípios lógicos de organização. Esta reação contrária aos exageros formais também marca o surgimento da
Dança Moderna, cuja proposta inicial de renovação encontrava-se balizada pela busca de
novos vocabulários de movimento.
Até aqui, as propostas estéticas que realocam a idéia de movimento têm como premissa o não-entretenimento e o não-formalismo, contudo, em meados do séc XX, uma outra discussão promoverá novamente a reconfiguração das concepções vigentes, nela a necessidade de especialização do corpo que dança torna-se alvo de indagação. Abalaram-se os pressupostos de que o treinamento técnico destinado à aquisição de um modelo padronizado de corpo era indispensável para se fazer dança.
Este século, marcado por rupturas, tem produzido grandes mudanças nas expectativas relativas à recepção da dança. O conceito de representação cênica é substituído pelo de
apresentação, ou seja, apresentar uma reflexão competente sem a proposição de soluções definitivas. A concepção de espetáculo de dança como
produto final é revista, adotando-se o entendimento de
produto processual. Com isso, o modelo da repetição é substituído pela construção da ação a partir da singularidade da implementação, abrindo brechas de reflexão em coisas constituídas, não mais se tratando da simples reprodução de algo que está pronto. Na instância da criação, a improvisação é adotada como ferramenta e os conceitos de incompletude, simultaneidade, fragmentação, acaso, não-linearidade, não-hierarquização, entre outros, passam a ser adotados pelas composições coreográficas.
Estes traços continuam permeando as produções atuais, onde a improvisação não é mais apenas uma ferramenta de criação, mas também um outro modo de se organizar a cena, uma vez que o material coreográfico previamente explorado se configura como procedimentos que terão suas propriedades, formais e relacionais, reconstruídas a cada apresentação.
Porém, algumas das produções contemporâneas mais recentes, através de suas formulações em curso, forçam uma outra mudança de percepção no sentido da atualização dos entendimentos de movimento em dança até então tidos como inquestionáveis.
A observação da tendência do “não-movimento” coloca a idéia de movimento em cheque, promovendo alterações radicais nos seus padrões de produção e de recepção, forçando a revisão de vários pressupostos já estabilizados. Cognitivamente, o não-movimento é uma impossibilidade para as espécies que possuem um sistema músculo-esquelético. O movimento está constantemente ocorrendo mesmo que não ganhe visibilidade, sempre há um fluxo inestancável de conexões e atualizações adaptativas se processando.
Há alguns anos, esta discussão pareceria infundada, uma vez que reinava absoluta a certeza de que o movimento era o meio de expressão fundamental da dança e, mais do que isso, sabia-se perfeitamente o que esperar dele. Mas a situação mudou vertiginosamente nas últimas décadas. Ao longo de sua história, o entendimento de movimento em dança sempre esteve mergulhado em constantes processos investigativos e, conseqüentemente, questões relativas ao corpo que dança se encontravam, e ainda se encontram, em processo de formulação.
Este fluxo de mutabilidade pede pela construção de outras formas de conhecimento, também mutáveis, e neste momento, fica em aberto a seguinte questão: Estaria o movimento deixando de ser a ação fundante de toda e qualquer composição coreográfica?
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