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CETAD UFBA

"As drogas não podem ser tomadas como um mal em si mesmas, como causa, senão de modo enviesado, ou como o avesso da causa"
Gey Espinheira

Epidemiologia do consumo de substâncias psicoativas - Tendências do consumo de SPA no Brasil

Consumo de drogas entre estudantes

A maioria dos estudos epidemiológicos sobre consumo de drogas no Brasil se refere a populações estudantis. São inquéritos transversais que buscam estimar a prevalência do uso de substâncias psicoativas (SPA) lícitas e ilícitas entre universitários e estudantes de 1º e 2º graus. Várias razões justificam a abordagem dessa população específica. Primeiro, é evidente a facilidade de acesso em relação à população em geral, e mesmo, populações

institucionalizadas ou de trabalhadores. Segundo, a existência de instrumentos e procedimentos desenvolvidos pela Organização Mundial da Saúde para o estudo do consumo de drogas entre estudantes73 adaptados para a realidade brasileira. Terceiro, e talvez mais importante, os adolescentes são considerados grupo de risco para o consumo de SPA e os escolares têm sido eleitos como população-alvo de programas de prevenção. Na adolescência, ocorre o primeiro contato do indivíduo com a droga e esta experimentação pode se transformar em outros tipos de consumo (ocasional, moderado ou abusivo). Ademais, a vulnerabilidade dos adolescentes decorre do fato de que é uma fase de grandes descobertas e transformações e a passagem para a vida adulta implica em movimentos de ruptura para a construção de identidade, e a conseqüente necessidade de transgredir e vivenciar novas experiências, dentre as quais, a de uso de drogas. O estabelecimento de comparações entre os estudos desenvolvidos no Brasil nem sempre é possível em função da inexistência de padronização metodológica. Isso é particularmente válido para o conjunto de pesquisas anteriores a 1987, quando ainda não haviam sido difundidas as recomendações da OMS. Segundo Almeida – Filho (1991), tais estudos apresentam problemas metodológicos importantes*, tendendo a distorcer os indicadores, especialmente aqueles referentes a drogas ilícitas.

Drogas de uso lícito

Em todos os estudos desenvolvidos no Brasil que abarcam tanto drogas lícitas quanto ilícitas, as primeiras foram as mais consumidas. As prevalências de consumo de álcool (uso na vida) para estudantes de 10 e 20 graus se encontram em patamares acima de 60%. Não raro este indicador está acima de 80%4,5,12,25,29,44,49,55,65,70,80. Para o tabaco, são observados também indicadores bastante elevados: em geral, em torno de 30 a 40% para uso na vida12,25,44,55,65,80, mas, até de 50%70. Em estudos entre universitários também se tem encontrado resultados nestes patamares38,41,72. As prevalências de uso freqüente e uso pesado de álcool e tabaco são, também, bastante superiores às observadas para as substâncias de uso ilícito, ficando em torno de 1,4 a 24% e 4,9 a 12%, respectivamente, para uso freqüente de álcool e tabaco, e de aproximadamente 5 a 12% e de 4,3 a 12%, respectivamente, para uso pesado de álcool e tabaco12,25,52,71,73. A análise dos diferentes estudos permite concluir que há um decréscimo progressivo das taxas do consumo experimental ao consumo mais freqüente. Esse decréscimo pode ser observado em relação aos diferentes tipos de SPA, sendo, entretanto, menos acentuado nas drogas de uso socialmente aceito (álcool e tabaco) que nas de uso ilícito. Isto significa que o álcool e o tabaco, especialmente este último, apresentam uma tendência muito maior à estabilidade do consumo que as drogas de uso ilícito.

* Almeida-Filho (1991) refere como principais problemas observados nos estudos relativos a esse período: bias de seleção, ausência de avaliação de instrumetnos (validade e confiabilidade), simplificação e inadequação da análise de dados.

Drogas de uso ilícito

Entre as drogas de uso ilícito, os inalantes† são as mais utilizadas. Entretanto, os resultados de alguns estudos realizados no sul do país mostram um outro padrão de consumo, onde a maconha assume esta posição12,25,30,55,65,71,77,80. Os inalantes chegam a alcançar percentuais semelhantes ao do tabaco quando se trata de uso na vida, apresentando, no entanto, um comportamento bastante diferenciado do primeiro no que diz respeito à estabilidade de consumo. Isto é, embora chegue a alcançar percentuais de uso na vida próximos a 30%38,45,55, o uso freqüente dos inalantes alcança geralmente cifras em torno ou abaixo de 2,5%12,25,80. Assim, o padrão de consumo do uso de inalantes entre estudantes tem sugerido uma forma específica de adesão à droga, muito mais associada à sua utilização esporádica e eventual nesse grupo. Vale lembrar que o uso recreacional não é destituído de riscos à saúde, devendo-se considerar, inclusive, a ocorrência de acidentes fatais por depressão acentuada do sistema nervoso central. As prevalências de uso na vida de maconha entre estudantes têm se mostrado bastante variável nos diversos estudos, com uma amplitude em torno de 4 a 20%, em sua maioria, entre estudantes de 1º e 2º graus, chegando a 46% em estudo realizado numa escola de 2º grau em São Paulo. Para os universitários, esses valores estiveram em torno de 9 a 20%. Os percentuais de uso freqüente e uso pesado da maconha encontraram-se em patamares inferiores a 5%, demonstrando que, apesar da popularidade adquirida nos últimos anos, seu consumo usual ainda se encontra restrito a grupos específicos12,25,30,38,41,55,65,70,71,72,74,77,80. Finalmente, ao se considerar o consumo de SPA entre estudantes, deve-se destacar o uso de cocaína nas suas diversas modalidades. Em estudos entre † Na verdade, o grupo dos inalantes abarca tanto substâncias cuja produção, distribuição e consumo são ilícitas – como a loló e o lança-perfume – com produtos de ampla comercialização no mercado, mas cujo uso como substância psicoativa é caracterizado com ilícito pela legislação vigente. Nesse grupo estão incluídos a cola de sapateiro, acetona, benzina, entre outras.

11 estudantes de modo geral a prevalência de uso na vida da cocaína variou de 0,3% em Recife (PE) a 3,4% em Palhoça (SC). Observa-se uma tendência de aumento de uso na vida25. Em poucos estudos observa-se relato de uso de crack e êxtase. Dentre estes, a prevalência de uso na vida encontrada para o êxtase foi de 0,774 e 1,3%71, e para o crack de 1,4 %72. O êxtase foi pouco relatado nas pesquisas epidemiológicas sobre uso de drogas entre os estudantes no Brasil, apesar do seu consumo estar sendo difundido e sofrendo incremento na Europa e Estados Unidos. Em pesquisa realizada em São Paulo, entre usuários de êxtase com amostra definida a partir da técnica de snowball, observou-se um padrão de uso associado a consumo recreativo grupal. Neste estudo foram pesquisadas as percepções dos usuários sobre “efeitos positivos e negativos” do seu uso, tendo como resultado geral uma avaliação positiva dos usuários quanto aos efeitos dessa substância. Este uso esteve, também, associado a outras substâncias psicoativas para 93% dos indivíduos2. O uso de êxtase tem sido relatado em circunstâncias muito particulares, num contexto do que se tem chamado de uma “subcultura específica” de lazer noturno, caracterizada por festas raves, dança e música eletrônica, sendo esta substância popularmente conhecida como a “pílula da felicidade”.

Medicamentos

Os estudos sobre consumo de SPA entre estudantes têm se interessado pelo consumo de medicamentos psicoativos, especialmente pelo uso sem indicação médica e com potencial de abuso. Na verdade, juntamente com o álcool, tabaco, cannabis e inalantes, os medicamentos têm sido freqüentemente referidos nos inquéritos, alcançando prevalências de uso extremamente elevadas12,30,38,41,55,65,71,72,77,80.

12 Entre os medicamentos, os tranquilizantes e anfetamínicos têm figurado consistentemente entre os 5 principais grupos de substâncias, consumidos tanto em escolares do ensino fundamental e médio como para os 12,30,38,41,55,65,71,72,77,80

universitários

. Nos inquéritos desenvolvidos pela Escola

Paulista de Medicina, tais substâncias têm apresentado, ademais, uma tendência a aumento do uso freqüente. Enquanto em 1987 obtiveram-se prevalências de 0,4% e 0,7%, respectivamente para anfetamínicos e ansiolíticos, tais estimativas alcançaram percentuais em 1997 de 1,0% e 1,4%, respectivamente25. Entre universitários brasileiros parece ser particularmente importante o uso de medicamentos entre estudantes do curso médico. Diferentemente do que acontece com as outras drogas, o uso de tranquilizantes inicia-se, na sua maioria, após o início do curso médico, com um proeminente aumento do uso nos últimos anos de graduação, tanto na prevalência de uso no ano como uso no mês. Este fato pode estar relacionado ao estresse ao final de curso e proximidade do exame de residência, com sobrecarga de plantões, a uma falsa idéia de auto-controle do uso dessas substâncias, aliado a um acesso facilitado, fazendo com que os medicamentos, mais especificamente os ansiolíticos, sejam a “droga de escolha” entre esse grupo38,53,72.

Evolução temporal do consumo de drogas entre estudantes

Um aspecto importante a se considerar na análise dos padrões de consumo é o seu comportamento ao longo do tempo. Nos casos dos estudantes, não existe no Brasil um estudo longitudinal que permita esse acompanhamento, tal como ocorre nos Estados Unidos. Todavia, alguns estudos com populações bem definidas e procedimentos similares permitem estabelecer algum nível de comparação.

13 A análise de quatro inquéritos entre escolares realizados pelo CEBRID mostrou que, na estimativa global, não houve mudanças estatisticamente significantes no período entre 1987 e 1997 com relação ao uso na vida, tanto com respeito ao álcool e tabaco quanto às drogas de uso ilícito. Entretanto, observando-se isoladamente as diversas substâncias, bem como as cidades pesquisadas, algumas tendências puderam ser constatadas: aumento de prevalência para maconha, anfetaminas e cocaína para uso na vida, e dessas três mais ansiolíticos para uso freqüente; incremento do uso na vida de tabaco em sete, do uso freqüente de álcool em seis e do uso pesado de maconha em todas as dez cidades investigadas. Entra Tabela 7.1 Estudo comparando resultados entre 1996 e 2001, realizado com universitários de São Paulo revelou crescimento de uso ilícito (uso na vida, no ano e no mês) para algumas SPA, estabilização para outras e ausência de decréscimo para qualquer delas. Houve aumento estatisticamente significante para uso na vida de álcool, tabaco e para as drogas de uso ilícito (uso na vida, no ano e no mês) tomadas em seu conjunto. Dentre estas, apresentaram aumento isoladamente, para todas as prevalências estimadas, a maconha, os inalantes e as anfetaminas; para uso na vida e no ano, os alucinógenos; e apenas para uso na vida, os barbitúricos e os anticolinérgicos. Entra Tabela 7.2 O aumento do consumo de medicamentos pelos estudantes brasileiros apresenta congruência com o fenômeno mundial que vem sendo observado nos últimos anos. As Nações Unidas informam que em anos recentes o aumento mais pronunciado com relação ao abuso de drogas tem sido o de drogas sintéticas, especialmente anfetaminas, largamente difundidas mundialmente, com um consumo alcançando cifras de 0,6% da população mundial81.

14 ---+++ Fatores de risco associados ao uso de drogas entre estudantes Muitos estudos epidemiológicos sobre o uso de drogas têm empreendido esforços no sentido de encontrar fatores que possam estar associados a uma maior possibilidade de risco ou proteção. A maioria dos estudos não apresenta diferenças significativas de prevalência entre os sexos, quando as drogas são tomadas em seu conjunto. Porém, em separado, essas diferenças se manifestam. Vários resultados mostram uma maior prevalência do sexo masculino para as drogas ilícitas, principalmente a maconha, a cocaína e solventes; o sexo feminino tende a apresentar uma prevalência maior para o uso de medicamentos, principalmente os ansiolíticos e as anfetaminas. Estas, com forte associação a uma exigência cultural, que privilegia o padrão de estética da magreza como símbolo de beleza, associado ao fácil acesso, já que estas drogas são obtidas em farmácias12,30,41,57,65,77,80. Os estudos nacionais têm mostrado que o consumo de álcool é predominante no sexo masculino, sendo a diferença entre os sexos muito pequena, inexistente, ou mesmo, levemente superior no sexo feminino quando se trata do uso na vida. Entretanto, quando se analisam os resultados com relação às demais categorias de consumo (uso na ano, no mês e freqüente), a predominância do sexo masculino se estabelece, observando-se um aumento progressivo das razões de prevalência entre os sexos em alguns estudos4,49,59. Vários estudos reiteram o aumento do consumo de drogas com a idade5,25,49,50,78. No entanto, o que mais chama a atenção com respeito a essa relação é a precocidade do uso, especialmente do álcool, refletida nas elevadas taxas de prevalência em adolescentes de tenra idade4,50,75. Almeida-Filho e colaboradores (1988a) observaram um consumo semanal de álcool em 45,5% das crianças com menos de 10 anos de idade. Em um inquérito realizado com 1.644 alunos de uma rede de escolas, Medina e colaboradores (1995) observaram que 24,1% deles afirmaram ter usado bebida alcoólica pela primeira vez com menos de 10 anos de idade e 72,5% tiveram seu primeiro contato entre 10 a 14 anos. Galduróz & Noto (2000), em estudo com estudantes de primeiro e

15 segundo graus de dez capitais brasileiras, abordando o uso pesado de álcool, observaram que, em comparação com levantamentos anteriores, houve um aumento desta prevalência em oito das dez capitais. Discutem os autores a possibilidade de que o início precoce do uso de álcool possam tornar o adolescente mais susceptível às questões do uso abusivo e à dependência desta droga legal. Vale ressaltar, também, a precocidade com que se dá a iniciação ao uso de inalantes (muito semelhante ao que ocorre com o álcool), e uma discreta tendência à estabilização ou decréscimo entre as faixas mais elevadas consideradas no estudo, o que corrobora a hipótese de que os inalantes são drogas especialmente consumidas por adolescentes jovens. Além do sexo e idade, diversos fatores associados ao consumo de drogas têm sido mencionados12,30,38,41,56,65,71,72,77,80. Dentre eles podemos destacar: - Características familiares: uso de drogas por familiares, que em alguns estudos é considerado fator preditor; atitude permissiva ou liberalidade dos pais, sendo, muitas vezes, vivenciada pelo adolescente como abandono; relacionamento ruim com os pais, havendo, por exemplo, relatos de estudantes de não se sentirem apoiados ou compreendidos, de maus tratos oriundos de violência doméstica, entre outras; - Educação religiosa: a ausência de uma educação religiosa tem sido associada ao maior consumo de substâncias psicoativas e alguns autores levantam a hipótese que a formação em uma religião pode possibilitar ou reforçar sentimentos de esperança e a sentir-se mais seguros para enfrentar o futuro. Este comportamento também pode estar relacionado com posturas mais conservadoras. A prática religiosa é apontada em alguns estudos como fator de proteção ao envolvimento com drogas; - Disponibilidade financeira: para álcool e tabaco os resultados não são tão esclarecedores quanto para as drogas ilícitas, onde a relação com a classe social mais favorecida é estabelecida mais frequentemente nos estudos. Este

16 fator facilitaria o acesso e o poder de compra. Esta hipótese também pode explicar os achados de maior consumo em estudantes trabalhadores. Soldera e colaboradores (2004), em estudo realizado em Campinas, encontraram associações ao uso pesado de drogas com trabalho e ao pertencimento aos níveis sócio-econômicos A e B, levantando-se uma hipótese de que os jovens de bairros periféricos, com menor poder aquisitivo e envolvidos com uso pesado de drogas não estejam mais no sistema educacional. Identifica como fatores protetores a educação religiosa, ambiente e estrutura familiar (apoio e compreensão) e como facilitadores a disponibilidade financeira (nível sócio-econômico e trabalho), padrões de socialização “adulto mórfico” (trabalho e ensino noturno). O baixo rendimento escolar foi notoriamente associado com o uso pesado de álcool levantando-se as seguintes hipóteses: alterações neuropsicológicas pelo uso de drogas, dificultando a aprendizagem, baixo desempenho, revelando algum tipo de desajuste, baixo rendimento, levando à baixa auto-estima e induzindo o uso de álcool. Estudo entre estudantes de medicina de 9 escolas médicas paulistas demonstrou que o uso de drogas estava associado com as seguintes variáveis: ser homem; ausência nas aulas sem razão ou muito tempo nos finais de semana e ter atitude flexível em relação ao uso38. Entra tabela 7.3 e 7.4 (ou como anexo)

Consumo de drogas entre meninos e meninas em situação de rua

O estudo do consumo de SPA entre a população estudantil tem sido uma estratégia para se estimar o consumo entre adolescentes e jovens em geral. Entretanto, o conjunto de adolescentes que freqüenta as instituições formais de ensino não pode ser considerada de forma semelhante àquele que se encontra à margem desse sistema. As condições que fazem com que os indivíduos se situem fora do sistema formal são suficientes para tornar a população estudantil

17 caracteristicamente distinta em relação aos demais jovens. No que se refere à questão do uso de drogas, os diversos fatores associados à situação de rua (individuais, familiares e o contexto social) aumentam a probabilidade do seu consumo nessa população. Alguns estudos têm sido desenvolvidos no Brasil abordando meninos e meninas em situação de rua, sendo que, em sua maioria, eles enfocam apenas o subgrupo que recebe algum tipo assistência institucional, não sendo, portanto, a princípio, representativos da população de meninos de rua. Os indicadores observados para o consumo de SPA entre meninos em situação de rua têm sido extremamente elevados quando comparados aos dos estudantes. Em estudos realizados em 1993 em cinco capitais brasileiras60 entre meninos de rua de 9 a 17 anos de idade, observou-se prevalências para uso na vida de qualquer SPA (exceto álcool e tabaco) de 57% (Rio de Janeiro) a 90,5% (Recife). O mesmo indicador para os estudantes no ano de referência havia sido de 22,8%25. No estudo mencionado, as prevalências de consumo (uso na vida) de solventes são muito próximas às do álcool e tabaco: variaram de 42,5% no Rio de Janeiro a 83,0% em Recife. Sucederam os solventes, a maconha – 45,5% a 63,0% - e a cocaína e derivados, cujo consumo mostrou-se particularmente elevado em São Paulo (46,5%). Foi surpreendente, nesse estudo, a proporção de meninos de rua que havia usado drogas diariamente no último mês: 12,0% no Rio de Janeiro, 19,0% em Fortaleza, 30,5% em São Paulo e 46,0% em Recife. Ao discutir as características de consumo de solventes entre populações de baixa renda, destacam os elevados níveis de consumo (só superado ao de álcool) entre jovens e crianças de baixa renda no Brasil, superiores, inclusive, aos indicadores observados no México e Chile em populações similares. Diferentemente do observado com os estudantes, nessas populações o uso de solventes, dentre os quais a cola de sapateiro ganha destaque, apresenta-se crônico, possivelmente relacionado às dificuldades e carências da

marginalização social aliada à acessibilidade a este tipo de SPA.

18 Inquérito similar ao de 1993 foi desenvolvido em 1997 em seis cidades, sendo que 88,1% dos entrevistados relataram já haver usado drogas e 48,3% informaram uso de 5 ou mais vezes por semana no mês anterior à realização da pesquisa58. Além do álcool, tabaco, solventes, maconha e cocaína, chama a atenção nos estudos com meninos de rua o uso de medicamentos, especialmente o flunitrazepan (Rohypnol) e trihexyphenidil (Artane). Noto (1999) observa que, em relação aos levantamentos anteriores, o inquérito realizado em 1997 aponta para o aumento na maioria das capitais do número de usuários de cocaína (sendo o crack praticamente restrito a São Paulo e a merla a Brasília, entre as cidades estudadas) e a redução em São Paulo do consumo de medicamentos pelos meninos de rua. Em 2003, foi realizado o quinto levantamento sobre o uso de drogas entre criança e adolescentes em situação de rua, nas 27 capitais brasileiras. Em relação ao início do uso, 19,1% relataram ter iniciado antes e 31,0% após a situação de rua. A primeira droga utilizada foi o solvente (27,1% dos casos), seguida de maconha (20,4% dos entrevistados). Os meninos apresentaram maior prevalência de uso no geral, apesar de não ter sido encontrado esta associação em todas as capitais. Foi unânime em todas as cidades o aumento da probabilidade de uso de drogas com a idade, semelhante às pesquisas com estudantes. Também a ausência de vínculo escolar e o fato de não residir com a família estiveram associados ao maior consumo na maioria das capitais brasileiras. A droga de uso mais freqüente foi o tabaco, com 44,5% de uso no mês, sendo que em São Paulo, Recife e Rio de Janeiro este percentual atingiu 80 a 90% dos entrevistados, com 70% de uso diário. O uso na vida foi de 63,7%, bastante superior aos 29,3% encontrado entre estudantes25. O álcool teve uma prevalência de uso na vida de 76%, semelhante ao encontrado em estudantes25. Vale a pena ressaltar que, no que se refere ao consumo de bebidas alcoólicas, as prevalências são semelhantes entre os dois grupos. Considerando-se que 43,6% dos meninos iniciaram o seu uso antes de

19 se encontrarem em situação de rua, deve-se reforçar a hipótese de permissividade do ambiente familiar em relação ao uso do álcool. O uso de solvente foi encontrado em quase todas as capitais, chegando a 60% de uso diário em São Paulo e Recife. Em 16,9% o início ocorreu antes da situação de rua e 26,8% após este fato, diferentemente do relatado para álcool e tabaco. O uso da maconha foi encontrado em todas as capitais brasileiras, em proporções variadas. O uso no mês foi de 25,4%. O primeiro episódio ocorreu antes da situação de rua em 14,0% e após em 26,3%. Dentre os entrevistados, Aproximadamente 60% relataram nunca terem feito uso. Cerca de 13% dos entrevistados relataram uso no mês de derivados da coca, sendo 5,2% na forma de cocaína cheirada, 0,4% cocaína injetada, 2,5% de merla, 5,5% de crack e 3,1% outra droga derivada da coca. A grande maioria dos usuários referiu uso após a situação de rua. Em relação aos medicamentos psicotrópicos 3,8% referiram uso no mês de Rohypnol, 1,6% de Artane e 1,1% de Benflogin.

Estudos populacionais

Poucos estudos têm sido desenvolvidos no Brasil com o propósito de estimar o consumo de SPA na população em geral. Na década de 80, alguns estudos populacionais sobre morbidade psiquiátrica estimaram prevalências para o abuso e dependência ao álcool10,65,68. Outros estudos sobre alcoolismo, uso de tabaco e medicamentos foram conduzidos no país nas últimas décadas, entretanto, parecem-nos ainda insuficientes para traçar o perfil epidemiológico da população no que diz respeito à questão do consumo de SPA. Na verdade, o país ressente-se da ausência de um sistema de informações capaz de contemplar as diversidades regionais e de produzir políticas locais e nacionais

20 adequadas no que se refere à prevenção e atenção relacionadas ao abuso de SPA. Em uma revisão da literatura sobre consumo de álcool e alcoolismo no Brasil, Santana e Almeida-Filho (1987) encontraram grandes variações nas estimativas de prevalência, enfatizando a dificuldade de generalização dos achados em função das especificidades das populações abordadas. Para a América Latina, a prevalência global de alcoolismo estaria entre 3 e 23%. Nesta mesma revisão, os autores apresentam os resultados de um estudo populacional realizado em um bairro da cidade de Salvador, com uma amostra de 1.511 indivíduos, que apresentou prevalência de alcoolismo e de consumo exagerado de álcool de 3,4%, de embriaguez semanal de 9,7% e de consumo diário, de 14,2%. O sexo masculino apresentou prevalências bem superiores (cerca de 8 vezes) para alcoolismo e consumo exagerado de álcool, enquanto no feminino a embriaguez semanal e o consumo diário apresentaram-se com freqüência mais elevada (em torno de 1,5 vez). Com relação à idade, os grupos onde ocorreram as maiores taxas de alcoolismo e consumo exagerado foram aqueles entre 25 e 54 anos, para ambos os sexos. Em 1991, foi conduzido no Brasil um estudo multicêntrico sobre morbidade psiquiátrica6 em 3 capitais (Brasília, São Paulo e Porto Alegre), que apontou como principais problemas de saúde mental, entre a população adulta (maiores de 14 anos), o abuso e dependência relacionados ao álcool. As estimativas para prevalência na vida do problema foram de 7,6%, 8,0% e 8,7%, respectivamente para São Paulo, Brasília e Porto Alegre. Já a prevalência nos últimos 12 meses, considerando-se apenas os casos que potencialmente necessitariam de assistência em serviços de saúde, alcançaram valores de 4,3%, 4,7% e 8,7% (São Paulo, Brasília e Porto Alegre). Tais indicadores apresentaram-se similares aos observados no ECA realizado nos EUA e bastante superiores aos inquéritos anteriores realizados no país. Um achado importante evidenciado no estudo foi a elevadíssima prevalência do alcoolismo entre os homens, 11 vezes maior que a observada para as mulheres

21 na amostra total, alcançando valores entre 15,0% a 16,0% para prevalência na vida e de 8,6% a 15,9% para prevalência no ano, despontando no estudo como principal problema de saúde mental presente na população masculina. Os autores discutem o sugestivo incremento nos últimos anos de níveis de prevalência de desordens produzidas por processos de determinação social, entre as quais estaria o alcoolismo. Um outro estudo populacional foi desenvolvido por Almeida e Coutinho (1993) na Ilha do Governador (Rio de Janeiro), com 1.459 indivíduos maiores de 13 anos de idade. Como resultado, obteve-se uma prevalência de 52% para uso de álcool (não fica claro no estudo se o uso de álcool se refere ao uso na vida ou a um outro tipo de uso ) e de 3% para alcoolismo, sendo de 4,9% para os homens e de 1,7% para mulheres. Foram identificados como fatores positivamente relacionados ao alcoolismo o sexo masculino, renda familiar superior a 3 salários mínimos e faixa etária entre 30 e 49 anos, sendo que a renda deixou de apresentar significância estatística quando inserida num modelo de regressão logística. Embora não tenha sido objetivo deste trabalho proceder a uma revisão específica sobre tabagismo, é importante ressaltar a magnitude desse problema no país. Moreira e colaboradores (1995) encontraram estimativas populacionais no Brasil oscilando entre 32% e 42%, sendo maiores as prevalências entre os homens de nível sócio-econômico inferior e entre a terceira e sexta décadas de vida. No estudo levado a cabo pelos autores com uma amostra representativa da população adulta (18 a 88 anos) de Porto Alegre foi encontrada uma prevalência global de tabagismo de 34,9%, sendo considerado tabagista o fumante que consumia a partir de 4 unidades por semana, independente do tipo de fumo. Os homens apresentaram prevalência maior que a das mulheres (41,5% contra 29,5%, com razão de prevalência masculino/feminino de 1,47). Nessa amostra, apenas 47,1% dos indivíduos foram classificados como não-fumantes. Com relação à idade de início de uso, a moda situou-se em 14 e 15 anos para

22 mulheres e homens, respectivamente. Observou-se, também, uma concentração maior de fumantes na faixa de 30 a 39 anos com decréscimo a partir de 40 anos. Como fatores associados, o estudo apontou, além de sexo e idade, o uso de bebidas alcoólicas e baixo nível sócio-econômico. Dois estudos populacionais realizados no município de Pelotas com

adolescentes apontaram para prevalências de tabagismo entre 11 e 12%. Foram mencionados como fatores de risco a idade, o uso de bebidas alcoólicas, tabagismo do grupo de amigos e de irmãos, baixo rendimento na escola, repetência e não inserção no sistema escolar35,46. Em relação ao consumo de medicamentos psicoativos, um inquérito

epidemiológico realizado na Ilha do Governador em 19881 apontou os ansiolíticos e, especialmente, os benzodiazepínicos como o principal tipo de psicofármaco consumido pela população (indivíduos maiores de 13 anos), com uma taxa de prevalência nos últimos 30 dias de 5,1%. Este uso mostrou-se associado ao sexo (mulheres, com odds ratio de 2,12) e idade (maiores de 55 anos, com odds ratio de 2,51). O uso de psicotrópicos na cidade de São Paulo foi investigado como parte de um inquérito epidemiológico sobre morbidade psiquiátrica em 199147. Como resultado, obteve-se uma prevalência de consumo em um ano de

aproximadamente 10%, com uma sobretaxa feminina (14,2% contra 5,8% entre os homens) estatisticamente significante. Dentre os psicotrópicos, os

tranqüilizantes obtiveram as maiores taxas de consumo na amostra total (80%) e em ambos os sexos (11,3% para o feminino e 4,6% para o masculino). Estudouse ainda, através de regressão logística, a associação entre o uso de tranquilizantes e uma série de variáveis observando-se que o consumo aumentou com a idade, com a renda per capita da família, além de uma associação positiva com o sexo feminino e com score positivo do instrumento utilizado para avaliação de morbidade psiquiátrica (QMPA). Em comparação com estudos anteriores realizados em São Paulo, os autores constatam não ter havido aumento do consumo de psicotrópicos, o que atribuem à crise do sistema

23 econômico com conseqüente redução do poder aquisitivo da população e à introdução de legislação reguladora relativa à venda de psicotrópicos. Neste mesmo ano (1991), o consumo de benzodiazepínicos foi investigado em Porto Alegre, entre 480 indivíduos com idade igual ou superior a 18 anos83. A prevalência de uso na vida de benzodiazepínicos foi de 46,7%, de uso no ano, 21,3% e uso no mês 13,1%. Foram encontradas diferenças estatisticamente significantes entre os sexos para uso na vida e uso no mês, com taxas respectivas de 36,7% e 9,0% para os homens e de 53,4% e 15,8% para as mulheres. A moda de idade de início na amostra foi de 30 anos. Mostraram-se como variáveis associadas ao uso de benzodiazepínicos, além do sexo, a idade (maior prevalência na faixa de 50 a 59 anos) e situação conjugal, (separados e viúvos apresentaram maiores prevalências que solteiros e casados). Estudo envolvendo as 107 maiores cidades do país, realizado em 200126 em indivíduos entre 12 e 65 anos de idade, revelou prevalência de uso na vida para drogas, excetuando álcool e tabaco, de 19,4% . O uso na vida de álcool foi de 68,7%, sendo que o sexo masculino apresentou um consumo maior que o feminino em todas as faixas etárias. Em relação ao tabaco, 41,1 % relataram uso na vida, sendo 46,2% do sexo masculino e 36,3% do sexo feminino. Comparando o uso na vida de tabaco entre adolescentes deste estudo com aquele realizado pelo CEBRID entre estudantes em São Paulo (1997) pode-se observar uma prevalência maior entre estudantes (30,7%) que nos adolescentes do levantamento populacional (15,7%). A prevalência encontrada de uso na vida para a maconha foi de 6,9% seguida de 5,8% para os solventes. Para

medicamentos com uso não médico, o uso na vida foi de 1,5%, sendo que o sexo feminino apresentou índice três vezes maior de uso de tranquilizantes e anfetamina que o sexo masculino. A cocaína e suas outras modalidades, o crack e a merla, apresentaram uso na vida de 2,3%, 0,4% e 0,2%, respectivamente. Estes dados reforçam o álcool e o tabaco como problemas de saúde pública.


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