Epidemiologia do consumo de substâncias psicoativas - Comentários finais
Desde o início do século XX, o consumo de substâncias psicoativas é considerado um problema em escala internacional, demandando a adoção de medidas de natureza, sobretudo, repressiva por parte dos governos de Estado, motivação mais relacionada com as implicações econômicas do gigantesco mercado de drogas ilícitas que às conseqüências do problema do abuso como fenômeno de saúde pública. Ainda assim, mesmo organismos internacionais de controle reconhecem que a magnitude e gravidade do problema do abuso de drogas de uso lícito são muito maiores que as de uso ilícito. Em relação ao uso de álcool, por exemplo, inúmeros problemas de saúde têm sido apontados e incluem baixo peso ao nascer, câncer de boca e orofaringe, câncer hepático, distúrbio monopolar depressivo e outras desordens
psiquiátricas, epilepsia, hipertensão arterial, isquemia miocárdica, doença cerebrovascular, diabetes, hepatite, cirrose, acidentes de trânsito e com máquinas, quedas, intoxicações, lesões autro-infringidas e homicídios51. Um achado importante, reiterado por diversos estudos, é a precocidade do uso de substâncias psicoativas de uso legal, corroborando a hipótese de
31 permissividade do ambiente familiar e a banalização em relação ao uso de álcool e tabaco, drogas que têm apresentado mais conseqüências em termos de saúde pública. Os índices observados com relação ao consumo de álcool entre estudantes obviamente não traduzem per si o “uso relacionado a problemas” ou a “dependência”, mas são fortes indicativos da ampla difusão desse hábito e sustentam a hipótese de que o contato com as drogas lícitas é estimulado, inicialmente, no seio da própria família. A propriedade da abordagem epidemiológica para o estudo do consumo das substâncias psicoativas (SPA) parece ser um consenso hoje na comunidade científica. Desde a década de 60, quando se questionava a possibilidade de sua utilização, até os dias atuais, a produção de trabalhos na área da Epidemiologia tem crescido vertiginosamente no mundo. No Brasil, também tem sido observado um crescimento importante da produção nessa área, particularmente nas últimas duas décadas. Os resultados dos estudos dos fatores de risco para o consumo de drogas, especialmente o consumo abusivo, têm sido profícuos e muito têm contribuído para o planejamento de programas de prevenção, principalmente nos países desenvolvidos. Algumas condições e atributos têm ganhado importância e destacam-se na revisão apresentada, sendo relacionados às seguintes variáveis: sexo, idade, etnia, ocupação, situação sócio-econômica, situação conjugal, atitudes ou estilos de vida, distúrbios de conduta na infância, personalidade anti-social, uso anterior de drogas e antecedentes criminais. Por outro lado, o próprio consumo de SPA constitui-se em fator de risco para uma série de condições, doenças e agravos. Analisando estudos integrantes desta revisão, podemos destacar as seguintes variáveis: comportamento sexual, em seus vários aspectos (número de parceiros, freqüência das relações, uso de preservativos, idade de início da atividade sexual, antecedente de prostituição, pagamento por sexo), desempenho escolar, doenças sexualmente
32 transmissíveis, contaminação por HIV, transtornos psiquiátricos, acidentes e violência. A aproximação da Epidemiologia com o objeto drogas tem favorecido, no âmbito deste campo disciplinar, uma reflexão sobre seus próprios conceitos. Por exemplo, os estudos sobre o consumo de drogas entre meninos em situação de rua fazem emergir um debate de natureza conceitual e epistemológica sobre o modelo a partir do qual se compreende a natureza do consumo de substâncias psicoativas. Isto porque a especificidade da situação dessa população, exposta a condições extremamente adversas de sobrevivência, desloca o lugar normalmente atribuído ao consumo de SPA, de “fator de risco” ou de “problema de saúde”. Os estudos têm atestado que as condições nas quais se dá esse consumo parecem estar mais relacionadas ao enfrentamento das situações de adversidade e de busca de sobrevivência e de adaptação à realidade - com resultados tão “saudáveis” quanto possíveis - que a uma escalada na direção da morte. Nesse contexto, tem emergido o conceito de resiliência, que vem sendo adotado por alguns autores e pretende traduzir processos que possibilitam a superação de crises e adversidades por indivíduos, grupos e organizações. Apesar de ainda não haver um consenso sobre este conceito, ele traz uma necessidade de mudança paradigmática com uma visão mais apropriada do problema69,84. Yunes (2003) afirma que, na construção do processo de resiliência, é necessária a desconstrução de práticas historicamente sustentadas por uma abordagem centrada na patologia. O desenvolvimento e aprofundamento deste conceito poderão abrir um novo horizonte para estratégias de prevenção para o uso de drogas, tanto em nível individual como social. Lidar com a expansão global do consumo de drogas e com as diversas nuances e particularidades que se apresentam é um desafio hoje para os
epidemiologistas e todos aqueles que direta ou indiretamente estão intervindo sobre este problema. Particularmente no nosso país, se fazem necessárias iniciativas para a realização de estudos populacionais e de grupos específicos
33 que permitam a análise e monitoramento de situações, além de produção e disseminação de informações dos centros especializados, sustentadas em critérios padronizados, com a criação e fortalecimento de observatórios. Um maior investimento no estudo dos fatores de risco e de proteção, juntamente com a implementação de estudos avaliativos que focalizem a análise de intervenções no âmbito da escola, de populações institucionalizadas, avaliando os efeitos de programas de prevenção e tecnologias terapêuticas, são fundamentais e ainda muito incipientes em nosso país. Com respeito aos serviços de saúde, especialmente o SUS, o confinamento das intervenções a instituições especializadas é um problema a ser superado. Os profissionais de saúde, em geral, têm extrema dificuldade de incorporar a abordagem do problema das drogas, deixando o atendimento de usuários e familiares exclusivamente para os centros especializados, gerando uma demanda reprimida incalculável. Uma articulação mais efetiva com a rede de serviços de saúde, com a qualificação de profissionais da rede básica, é uma necessidade atual que precisa ser encaminhada pelos órgãos competentes e claramente assumida pelas políticas de saúde. Para a Epidemiologia, restam ainda inúmeros desafios que perpassam questões teórico-conceituais e metodológicas, que dêem conta de um maior
embasamento da reflexão sobre o objeto e modelos de determinação e um aperfeiçoamento dos instrumentos de coleta e dos métodos de análise, além da avaliação e eleição de indicadores para o monitoramento de situações. Isto significa aprimorar as ferramentas epidemiológicas para o estudo da relação do homem com as drogas. Não se trata de tarefa simples e, muito menos, fácil. Construir a viabilidade de lidar com os desafios postos hoje no campo das drogas significa, para a Epidemiologia, ter em conta que o cenário que se nos apresenta é de crise dos valores humanos, perda da auto-estima e aumento da exclusão social em nossa sociedade, que reforçam a busca de prazeres alternativos; de crise econômica e social, que restringe a aplicação de recursos para pesquisa e desenvolvimento de ações preventivas e terapêuticas; e de
34 muito preconceito alimentado por anos a fio na nossa sociedade, no tocante às concepções sobre o consumo de drogas. O cenário é, portanto, restritivo e preocupante, exigindo o estabelecimento e a consolidação de parcerias entre aqueles que estão interessados num aprofundamento do conhecimento sobre o consumo de drogas e em intervenções no âmbito coletivo e individual que se mostrem efetivas para a solução do problema nos anos vindouros.