Universidade nova: nem Harvard, nem Bolonha
A educação universitária brasileira atual conserva modelos de formação oriundos das universidades européias do século XIX. Nela prevalece uma concepção fragmentada do conhecimento, agravada por reformas universitárias incompletas (e frustradas), nas décadas de 1960-1970, e por um período de desregulamentação da educação superior, nas décadas 1980-1990.
Na graduação, temos hoje um profuso sistema de títulos e denominações correlatas: Licenciatura, Bacharelado, Habilitação, Ênfase, Tecnólogo e denominações profissionais diretas (Médico, Dentista etc.). Filha da reforma universitária do regime militar, a pós-graduação é um capítulo à parte. Por exemplo, o Mestrado brasileiro não tem correspondência em nenhum país desenvolvido, seja o Master no sistema anglo-saxão, a Maitrîse francesa ou o Magister alemão. O título MBA, literalmente vendido no Brasil como pós-graduação, designa nos EUA a graduação do administrador de empresas.
Além de confusa e diversificada, essa arquitetura acadêmica sofre de outros problemas. Há excessiva precocidade na escolha de carreira profissional, completada por um sistema “traumático” e socialmente excludente para ingresso na graduação, o famigerado Vestibular. De fato, no Brasil, muito cedo, aos 16 ou 17 anos, os jovens tomam a decisão de carreira profissional de nível universitário. O ingresso direto a cursos profissionais, através de um exame feito para recrutar memorizadores de informações, desresponsabiliza a universidade pela cultura humanística e civil dos jovens.
Tal modelo de educação, decerto elitista, foi criado na França do século XIX, com a implantação de um núcleo de educação preparatória chamado Licée. Os alunos tinham formação prévia de base humanística e entravam diretamente em cursos profissionais de uma universidade elitizada. Naquela época, apenas cinco profissões estavam formalizadas, com poucos núcleos de conhecimentos e competências. Nessas condições, os jovens podiam entrar na universidade em fase mais precoce de suas vidas. Hoje, isso foi superado. O mundo é bem mais complexo que na Belle Époque. Mesmo a conservadora França ultrapassou este modelo. Engaja-se no processo de unificação da educação superior da União Européia chamado de Processo de Bolonha, baseado num Bachelor de estudos gerais.
Nos Estados Unidos, a educação fundamental e média, desde o início do século XX, é gratuita e universalizada. A elite brasileira critica a high-school americana por ser mais fraca que o nosso padrão do ensino médio. Este é um equívoco, pois se compara um sistema público de educação (o norte-americano) com uma elite de escolas privadas, especialistas em preparar jovens para ingresso em universidades públicas (brasileiras). O aluno norte-americano entra na universidade para um período de formação científica e cultural no undergraduate college, e só depois tem acesso a cursos de mestrado ou doutorado, definidores de profissões.
Na mistura de modelos que constituiu a confusa arquitetura da educação superior no Brasil, a educação científica e humanística ficou de fora. A nossa escola pública abandonou os estudos clássicos do velho sistema, e nunca conseguimos realizar uma reforma universitária capaz de trazer para dentro da universidade a formação intelectual necessária para compreender o mundo, a sociedade e a história. Destruímos o licée e não chegamos a implantar o college. Terminamos com um ensino médio meramente adestrador e com uma universidade que, na melhor das hipóteses, é capaz de formar técnicos competentes, porém... incultos.
Tudo isso teria sido diferente, caso tivéssemos acompanhado o mestre Anísio Teixeira, em duas oportunidades históricas. Na primeira vez, em meados da década de 1930, a Ditadura Vargas esmagou a Universidade do Distrito Federal, concebida pelos maiores intelectuais brasileiros da época, liderados por Anísio. A semente foi replantada na Universidade de Brasília, para logo ser reprimida brutalmente pelo golpe militar de 1964, que demitiu, prendeu e exilou vários dos seus docentes, a começar pelo Reitor Anísio Teixeira.
A Universidade Federal da Bahia encontra-se num momento privilegiado para iniciar, e aprofundar um processo de mudança da universidade pública brasileira, tornando-a compatível tanto com o modelo norte-americano quanto com o modelo do Processo de Bolonha. Podemos assim concretizar a Universidade Nova, diretamente inspirada nos conceitos da Escola Nova de Anísio Teixeira. A principal proposta é a implantação de Bacharelados Interdisciplinares, mediante uma pré-graduação em cultura universitária geral antes da carreira profissional de graduação e a formação científica ou artística da pós-graduação.
Neste momento, devemos aproveitar a chance de criar um novo sistema de educação universitária e articulá-lo com o que é predominante no mundo. Articulação e compatibilidade não significam submissão. Portanto, nem Harvard nem Bolonha, e sim a Universidade Nova. De todo modo, se não transformarmos radicalmente nosso modelo de educação superior, o Brasil pode ficar isolado no que se refere a formação profissional, científica e cultural. Nesse caso, seremos, em 2010, o único país com algum grau de desenvolvimento industrial a conservar um sistema de educação universitária do século XIX. Como os outros países já se encontram no terceiro milênio, isso será intolerável para o projeto de desenvolvimento da nação brasileira.
NAOMAR DE ALMEIDA FILHO, Reitor da UFBA