Histórico da Proposta


Em Atenas, no século IV a.C., foram fundadas importantes escolas destinadas ao ensino da filosofia, onde jovens aristocratas discutiam e aprendiam com seus mestres. Destacam-se entre elas, a Academia de Platão, o Liceu de Aristóteles e os Jardins de Epicuro que podem ser consideradas antecipações históricas das futuras instituições de educação superior, as universidades. A Academia platônica impressiona pela longevidade, pois só foi extinta em 526, sobrevivendo por cerca de novecentos anos.

A instituição que veio a ser chamada de Universidade se constituiu na Idade Média, no contexto do renascimento comercial e urbano do início do segundo milênio. Em conseqüência desse renascimento, o número de escolas secundárias catedralícias havia aumentado extraordinariamente, espalhando-se por toda a Europa Ocidental; isso contribuiu para o surgimento das primeiras universidades, organizadas como corporações de estudantes e professores que obtinham seu reconhecimento formal através de bulas papais ou cartas de outorga de imperadores e reis.

Bolonha (século XI) e Paris (século XII) foram os centros urbanos medievais onde se organizaram essas primeiras instituições, que tinham uma estrutura semelhante nos seus estudos básicos das chamadas artes liberais: o trivium (estudos dedicados à linguagem: gramática, lógica e retórica) e o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música).. Essa estrutura curricular dava continuidade a uma tradição que se iniciou na Academia de Platão e atravessou a civilização romana.

A esses estudos gerais (studium generale) seguiam-se cursos de Direito, Teologia e, posteriormente, Medicina, que constituíam os níveis superiores de educação. Em Bolonha, o curso de Direito compreendia o estudo do Corpus Juris Civilis dos romanos e o direito canônico. Em Paris, o curso de Teologia se destacava, atraindo grandes mestres da filosofia escolástica. Quanto ao curso de Medicina, embora antes da constituição formal das universidades, já existissem escolas de preparação de médicos - como a pioneira escola de Salerno, criada no século X - é somente no século XIII que esses cursos passam a integrar universidades (Montpellier: 1220, Salerno: 1231) As universidades se expandiram por toda a Europa Medieval: por volta do ano 1300, havia quinze universidades e, em 1500, mais de setenta.

A formação para as “artes mecânicas” permanecia fora das universidades, sendo objeto das escolas militares ou de iniciativas isoladas de base estatal, como a famosa Escola de Sagres para as artes náuticas.

A revolução científica do século XVII traz um modo inteiramente novo de estudar a natureza, mas, paradoxalmente, não surge nem se desenvolve no interior das universidades, embora dois grandes nomes desse movimento, Galileu e Newton, tenham sido professores universitários. A resistência, e em alguns casos, a hostilidade das instituições universitárias dessa época ao “novo saber” fez com que surgissem numerosas sociedades científicas, sob a forma de academias, jardins botânicos, observatórios, laboratórios e museus onde se produzia e ensinava esse saber, então denominado de filosofia natural. Esses ambientes tiveram um papel decisivo no desenvolvimento do conhecimento científico. Nesse panorama conservador das universidades da idade moderna, registram-se, entretanto, algumas exceções, como a Universidade de Leiden e outras iniciativas isoladas.

O primeiro movimento na direção do que se poderia chamar de reforma universitária encontra-se registrado em uma obra da alta maturidade de um dos maiores filósofos da civilização ocidental, Immanuel Kant. Ele escreveu, em 1795, um pequeno grande livro chamado O Conflito das Faculdades, uma carta aberta ao Imperador Frederico Guilherme da Prússia, aparentemente se retratando de uma advertência do soberano. Kant anteviu a primeira reforma universitária, ao denunciar os últimos resquícios do caráter sacro da universidade, bem como a ingerência do Estado na sua autonomia.

Ainda no final do século XVIII, a universidade tinha três faculdades superiores, Teologia, Direito, Medicina e uma faculdade inferior, a de Filosofia, herdeira da tradição medieval do studium generale. Kant analisa criticamente a estrutura da educação superior do seu tempo: a verdade da Faculdade de Teologia era estabelecida pela divindade; a verdade da Faculdade de Direito submetia-se à vontade do soberano; a verdade da Faculdade de Medicina advinha do princípio de autoridade. Argumenta o filósofo que a verdade da Faculdade de Filosofia resultava do escrutínio científico do mundo, não submissa à autoridade do Deus, dos velhos mestres ou do soberano, para a definição da verdade, em um registro claro de autonomia, tanto em relação às faculdades superiores quanto perante poderes externos.

Retomava-se, portanto, em plena modernidade, a questão da autonomia universitária, não mais em relação à autoridade da Igreja, mas em relação ao poder político. Assim é que a Prússia visando reestruturar o sistema de formação superior, integrando-o ao desenvolvimento nacional, encomendou projetos de universidade aos mais renomados filósofos da época. Filósofos da estatura de Fichte, Schelling e Schleiermacher, bem como ao filólogo Wilhelm von Humboldt, apresentaram suas contribuições a essa primeira reforma universitária.

Divulgado em 1810, o Relatório Humboldt estabelecia o primado da pesquisa, priorizando a outrora faculdade inferior, assim realizando a proposta kantiana de universidade. Do ponto de vista de organização do saber, a reforma humboldtiana consolidou o sistema de gestão acadêmica com base no conceito da cátedra, instância de repartição dos campos de conhecimento em disciplinas científicas. Neste conceito, estendido à noção de “liberdade de cátedra”, para cada disciplina científica haveria um líder intelectual autônomo e responsável tanto pela gestão dos processos administrativos como pela gestão acadêmica dos conteúdos curriculares. A primeira universidade totalmente organizada de acordo com os princípios e diretrizes do Relatório Humboldt foi a Universidade de Berlim.

Esse modelo de universidade, entretanto, não é o único que se consolida a partir do século XIX. Na França, ainda no final do século XVIII, os enciclopedistas propõem um modelo de formação superior em contraposição à velha universidade corporativa, eclesiástica e aristocrática. Mas a reorganização da educação superior francesa só começará a acontecer no período pós-revolucionário (Convenção, 1794), com a criação da École Polytechnique e a École Normale Superieure que tinham por objetivo atender às exigências da revolução industrial e às demandas por quadros superiores para a burocracia estatal, e se tornaram modelos para muitas nações. No período napoleônico foi realizada uma grande reforma educacional em todos os níveis do ensino. De modo geral, os países do sul da Europa adotaram o modelo francês enquanto os países mais ao norte, de tradição protestante, seguiram o modelo germânico.

Na Inglaterra, desenvolveu-se um terceiro modelo que, mantendo as tradicionais universidades de Oxford e Cambridge com o perfil aristocrático e de cultivo de um saber “desinteressado”, criou em paralelo uma rede de instituições superiores científicas e técnicas, formando engenheiros, agrônomos, médicos, contadores e outros profissionais. As finalidades desse modelo eram muito pragmáticas: atendimento das demandas econômicas de um país que, no século XIX, era a maior potência industrial, militar e colonial do mundo e centro de uma economia capitalista em rápida expansão e profunda transformação.

Nos Estados Unidos, as primeiras instituições superiores surgem no século XVII, o primeiro século da colonização. Os primeiros colleges não eram cópias de Oxford ou Cambridge, mas escolas utilitárias que buscavam atender às necessidades educativas das comunidades locais e preservar seus valores.A forte tradição protestante da sociedade colonial norte-americana foi a motivação básica do esforço de alfabetização de sua população, possibilitando a todos acesso direto aos textos bíblicos. Essa valorização da educação transformou a sociedade norte-americana numa das mais escolarizadas do mundo, ainda no período colonial.

Uma reforma da educação superior, levada a cabo em 1860, dividiu a educação superior norte-americano em modelos bastante distintos: o primeiro, inspirado no modelo universitário alemão, representado pela Universidade de Harvard e a recém-criada Universidade John Hopkins, distanciava-se do utilitarismo para priorizar a investigação científica e o conhecimento humanístico, propiciando educação de alto nível e concessão de títulos doutorais. O segundo modelo, previa dois tipos de instituição, os junior colleges, com duração de quatro anos, com o objetivo de preparação para o trabalho e elevação do nível de cultura geral, e os land-grant colleges, voltados para as ciências, as artes e algumas carreiras profissionais. Essa estrutura acadêmica hierárquica replicava a estrutura de classes da sociedade norte-americana, prevendo-se mecanismos, como bolsas de estudo, para permitir a mobilidade ascendente de estudantes pobres e talentosos.

No início do século XX, cinco fundações norte-americanas, lideradas pela Carnegie Foundation, instituíram em 1905 uma comissão que avaliou o estado da educação superior nos EUA, principalmente na área de saúde. A presidência da comissão foi entregue a Abraham Flexner, então um jovem educador, especialista em filosofia. No plano organizativo, a Reforma Flexner consolidou o sistema departamental, com a separação entre gestão institucional (exercida pelos Deans das escolas e faculdades) e governança acadêmica, nesse caso conduzida pelos departamentos, compostos por todos os professores titulares (Full Professor), substituindo o regime de cátedra vitalícia da universidade humboldtiana. Além disso, a universidade norte-americana resultante da Reforma Flexner fomentava a organização de institutos e centros de pesquisa autônomos dos departamentos, propiciando flexibilidade e autonomia aos pesquisadores individuais ou em grupos.

Com poucas modificações, esse modelo de arquitetura acadêmica persiste em toda a América do Norte, sendo ainda compatível com os modelos de graduação das universidades britânicas e de todas as universidades da Comunidade Britânica (Reino Unido, Canadá, Índia, África do Sul, Nova Zelândia e Austrália, principalmente). A principal atualização desse modelo, após a crise institucional produzida pelos movimentos dos direitos civis dos anos 1960, consistiu na multiplicação de community colleges por todo o território norte-americano, massificando o acesso à universidade de segmentos sociais anteriormente excluídos da educação superior. A magistral obra de Clark Kerr registra e analisa desdobramentos recentes e tendências atuais do modelo universitário norte-americano, tornado cada vez mais dependente de agências de financiamento de pesquisa e referenciado pelo mercado de trabalho.

Na América espanhola, a instituição universitária chegou precocemente e, no final do século XVI, numa iniciativa conjunta do Estado Colonial e da Igreja, seis delas já haviam sido implantadas. Todas essas instituições copiavam o modelo da metrópole oferecendo os mesmos estudos e adotando a mesma estrutura. Em 1800, existiam 20 universidades ibero-americanas do México ao Chile. No século XIX, generalizou-se no continente o padrão francês de universidade napoleônica, voltada para a formação de quadros profissionais, organizadas num complexo de unidades autárquicas.

Um importante momento da história da educação latino-americana ocorreu em Córdoba, na Argentina, em 1918, por iniciativa de estudantes que reivindicavam a autonomia plena para as instituições universitárias. Exigências como participação dos estudantes na gestão das universidades, não ingerência dos governos nos assuntos internos e adoção de concursos como forma de admissão de professores, foram as principais bandeiras de luta desse bem sucedido movimento.

Os países europeus haviam chegado ao final do século XX com uma grande heterogeneidade de modelos de educação superior. Um grau obtido na França não tinha equivalência com nenhum outro país, em Portugal e Itália idem. Com a consolidação da União Européia, tornou-se imperativa a padronização dos sistemas de formação profissional entre os países signatários dos vários acordos de integração econômica e política. Esse debate começou desde as negociações visando à formação da comunidade econômica européia na Europa, culminando com o Compromisso de Lisboa em 1997.

Em 1999, os ministros de educação dos países membros da União Européia assinaram um grande tratado internacional, conhecido como a Declaração de Bolonha, em que se comprometeram a implantar, até 2010, compatibilidade plena entre os seus sistemas universitários. Esse acordo marcou o lançamento do chamado Processo de Bolonha, que tem desencadeado uma gigantesca e complexa reforma universitária em todos os países signatários no sentido de adotar princípios e critérios comuns e compartilhados de creditação, avaliação, estruturas curriculares e mobilidade estudantil na esfera da educação superior.

No mundo atual, destacam-se dois grandes modelos de arquitetura curricular e estrutura de gestão da universidade, referidos a blocos históricos distintos. De um lado, substrato ideológico, conceitual e tecnológico do sistema econômico e político mais poderoso na atualidade, e ao mesmo tempo sua resultante, vigora o Modelo Norte-Americano (MNA) de educação superior. De outro lado, efeito do processo de criação de um espaço comum universitário através do Processo de Bolonha, entre os países-membros da União Européia consolida-se o Modelo Unificado Europeu (MUE).

O modelo acadêmico norte-americano, como vimos acima, tem uma história quase centenária. Consolidou-se nos Estados Unidos e expandiu-se, particularmente após a II Grande Guerra, ao continente asiático e à Oceania. Sua arquitetura curricular compreende dois níveis:

(a) Pré-Graduação (em Inglês, undergraduate)

(b) Graduação (graduate).

A Pré-Graduação é ministrada em unidades de educação superior de escopo geral, isoladas ou integradas em universidades, chamadas de colleges. Compreende cursos universitários de 4 anos, cobrindo conteúdos gerais e básicos, terminais, porém de caráter não-profissional. Os concluintes ganham títulos universitários plenos de Bacharel em Ciências, Artes ou Humanidades, com uma área principal de concentração de estudos chamada Major, podendo optar por uma área complementar, o Minor.

Os títulos obtidos no College são terminais, mas funcionam como pré-requisito e etapa prévia à entrada no segundo nível, a Graduate School. Trata-se aqui de programas de graduação profissional ou programas de estudos avançados para formação científica ou artística de pesquisadores e docentes do ensino superior. Os graus (por isso o nome graduate) de formação profissional são Master (tipo MBA, M.Ed., M.Psych, M.S.W., M.P.H. etc.) ou Doctor (D.L., M.D., Pharm.D.). O diploma específico da carreira profissional corresponde ao título de Mestrado (e, em poucos casos, ao de Doutorado). Os programas de graduação acadêmica concedem graus equivalentes, que se distinguem dos títulos profissionais porque constituem uma seqüência de duas etapas de formação, o mestrado (Master of Sciences, Master of Arts etc.) e o doutorado (Philosophy Doctor, o Ph.D.). Notem que este nível de formação equivale ao que se denomina de Pós-Graduação no continente europeu, na América Latina e no Brasil.

O Modelo Unificado Europeu vem sendo implantado através do Processo de Bolonha, esforço de unificação dos sistemas de formação universitária da União Européia, visando à livre-circulação de força de trabalho especializada e bens de conhecimento entre os países-membros. A Declaração de Bolonha (1999), ratificada em sucessivas reuniões de consolidação em Praga (2001), Berlim (2003) e Bergen (2005), compreende programas de incentivo à mobilidade acadêmica internacional, um sistema de avaliação e credenciamento de instituições de ensino, a padronização e o compartilhamento de créditos acadêmicos e, fundamentalmente, a adoção de uma arquitetura curricular comum.

a) Primeiro Ciclo. Trata-se de programas de estudos introdutórios aos níveis superiores de educação, com duração de 3 anos. Como o college norte-americano, não possuem caráter profissional, cobrem conteúdos gerais e básicos e são terminais. Os concluintes ganham títulos universitários plenos de Bacharel em Ciências, Artes ou Humanidades. Tais títulos constituem etapa prévia ao prosseguimento da formação profissional ou acadêmica no ciclo seguinte.

b) Segundo Ciclo. Compreende cursos profissionais, de certo modo preservando a tradição secular dos sistemas europeus de formação profissional superior, em especial as chamadas “profissões imperiais” (Medicina, Direito, Engenharias). O Processo de Bolonha introduz na Europa o conceito norte-americano de mestrado profissional, dirigido particularmente às novas profissões tecnológicas e de serviços. Além disso, compreende um elenco de mestrados acadêmicos de curta duração (1 a 2 anos), tomados como etapa prévia à formação de pesquisadores e docentes de nível superior no ciclo seguinte.

c) Terceiro Ciclo. Doutorados de pesquisa, com duração curta (3 anos) ou longa (4 anos), dirigidos às áreas básicas de pesquisa.

Ainda é precoce para se avaliar o impacto do Processo de Bolonha no cenário universitário internacional. O prazo de implantação fixado para 2010 parece insuficiente para a completa unificação de modelos, principalmente em função da enorme diversidade de formatos anteriormente existentes nos países da UE. Não obstante, já se registra o sucesso dos programas de mobilidade acadêmica (Erasmus etc.) e de intercâmbio científico entre instituições de conhecimento (Alban etc.) que agora utilizam critérios e parâmetros comuns de avaliação acadêmica. Do ponto de vista político, também se pode contabilizar avanços no Processo de Bolonha: de uma base original de 18 signatários, o protocolo já recebeu a adesão de 46 países, dentro e fora da UE.

Educação Superior no Brasil: Raízes, Reformas e Estrutura Atual

Alguns estudiosos da educação superior no Brasil, como Luiz Antonio Cunha, afirmam que os cursos de teologia oferecidos pela Companhia de Jesus, desde o século XVI, os cursos de filosofia e teologia dos franciscanos, no Rio de Janeiro, e o de filosofia no Seminário de Olinda (século XVIII) eram, sem dúvida, cursos superiores do ponto de vista da sua estruturação curricular e duração, em tudo semelhantes aos oferecidos na Europa.

Entretanto, já se oficializou a versão de que os estudos superiores no Brasil se inauguram com a chegada da Corte portuguesa em 1808, que logo ao desembarcar na Bahia criou a Escola de Medicina e Cirurgia, embrião da futura Universidade Federal da Bahia. A criação de outras instituições de educação superior se seguiu com a instalação da Corte no Rio de Janeiro.

Depois da Independência, durante o período imperial, outras instituições acadêmicas (Medicina, Odontologia, Farmácia, Direito, Agronomia, Engenharia Civil, Engenharia Geográfica, Curso de Minas e Belas Artes) foram estabelecidas em sete cidades brasileiras. Nesse período, não se fez qualquer esforço para organizar universidades ou instituições similares e a educação superior acontecia em escolas isoladas. Já a partir dessa época, o modelo educacional francês passou a substituir o antigo monopólio intelectual de Portugal.

Estima-se que, no início do período republicano, a matrícula na educação superior contemplava apenas 2.300 estudantes. Nos anos subseqüentes, este número teria aumentado significativamente em decorrência de transformações econômicas e sociais e da multiplicação de instituições, estimulado pela ação ideológica dos positivistas em defesa do educação livre e do combate aos privilégios conferidos pelos diplomas.

Existe uma clássica disputa histórica sobre qual foi a primeira universidade brasileira. É preciso, entretanto, fazer a distinção entre tentativas de organizar formal e juridicamente instituições universitárias que tiveram duração efêmera ou nunca saíram do papel, e a efetiva concretização desse empreendimento. As chamadas “universidades passageiras”, todas criadas como entes privados, foram cronologicamente: a de Manaus – criada em 1909, no auge da prosperidade do ciclo da borracha e extinta, em 1926, com a decadência dessa atividade econômica; a de São Paulo – criada em 1911 e extinta em 1917; a do Paraná – criada em 1912 e extinta em 1915.

Em 1920, quando o Rei Alberto da Bélgica se encontrava num navio a caminho do Brasil, um decreto federal criou a Universidade do Rio de Janeiro, reunindo três escolas: Medicina, Direito e Politécnica. Há motivos para crer que a concessão do título de doutor honoris causa ao soberano teria sido a motivação desse decreto. Em 1927, um decreto estadual aglutinou sob a denominação de Universidade de Minas Gerais quatro escolas superiores. Somente anos depois, essas tentativas vão se concretizar no plano institucional.

A primeira universidade brasileira a funcionar como tal foi a Universidade de São Paulo, instituída em 1934 enquanto projeto acadêmico e institucional completo. Esta importante instituição foi organizada e consolidada com a ajuda de uma missão de jovens acadêmicos franceses, formados pela Sorbonne, que incluiu Fernand Braudel, Claude Lévi-Strauss e Roger Bastide, dentre outros nomes ilustres. Apesar de baseada em um modelo exógeno transplantado, muitos concordam que a USP foi realmente a primeira universidade verdadeira no Brasil, criando um paradigma nacional de instituição universitária no seu sentido mais pleno.

Nessa mesma época, aproveitando sua breve passagem como Secretário de Educação do Distrito Federal, Anísio Teixeira, notável pedagogo e filósofo da educação, propôs a instalação da Universidade do Distrito Federal. Afastando-se do modelo USP, convocou para esse projeto os maiores nomes da cultura nacional da época: Vila Lobos na música, Cândido Portinari na pintura, Gilberto Freire na Antropologia, Mário de Andrade na Literatura e Folclore, Jorge de Lima na Poesia, Sérgio Buarque de Holanda na História do Brasil e outros tantos nomes ilustres; o reitor era Afrânio Peixoto. Anísio Teixeira desafiou-os a pensar sobre como aplicar os princípios da Educação Democrática no âmbito universitário. Foi um período inegavelmente rico, no qual muitas idéias se concretizaram. Dessa iniciativa resultou um projeto tão avançado que provocou imediatos incômodos políticos: acusado de socialista, perseguido e ameaçado de prisão, Anísio refugiou-se no interior da Bahia. O Ditador Getúlio Vargas empossou um intelectual da direita católica, Alceu Amoroso Lima, como reitor interventor, com a finalidade de desmontar o experimento da UDF. No entanto, Anísio Teixeira guardou essas idéias e sonhos para mais tarde aplicá-los na revolucionária Universidade de Brasília.

A partir dos anos 1930, ocorre significativa expansão da educação superior pública, através da implantação de universidades que hoje compõem a rede federal. Em 1946, foram inauguradas instituições semelhantes em todo o país, notadamente a Universidade do Rio de Janeiro, a Universidade da Bahia e a Universidade de Recife. Instituídas por decretos legislativos, com estruturas de gestão e ensino muito semelhantes, essas instituições emulavam o modelo institucional e pedagógico da Universidade de Coimbra, copiando até mesmo rituais acadêmicos e vestes talares. Por exemplo, encontra-se explicitamente declarada, nos documentos de fundação da Universidade Federal da Bahia, a meta de tornar-se uma Coimbra brasileira. A Universidade de Coimbra cultuava a respeitosa tradição histórica da universidade escolástica e, nesse período em que se consolidava a ditadura salazarista, era uma das universidades de estrutura mais arcaica dentre as instituições acadêmicas européias.

Não obstante, essas novas instituições abrigaram importantes scholars e artistas europeus que fugiam da devastação do pós-guerra. Isto lhes permitiu, de modos diversos, superar suas origens em instituições oligárquicas e conservadoras, como era o caso da Sorbonne e da Universidade de Coimbra na Europa de meados do século XX. No caso da UFBA, por exemplo, graças à visão do Reitor Edgard Santos e aos muitos intelectuais e artistas europeus que o ajudaram a instalar novas faculdades de artes e ciências humanas, acabamos por nos tornar uma das principais universidades de arte & cultura do país.

Só nos anos sessenta, o modelo de universidade de pesquisa científico-tecnológica chegou ao Brasil. Anísio Teixeira e seu discípulo Darcy Ribeiro, antropólogo e também educador, conceberam a Universidade de Brasília para se tornar o primeiro centro acadêmico de um novo modelo civilizatório para o Brasil. Entusiasta da filosofia pedagógica de John Dewey, com quem estudou no Teacher’s College da Columbia University, Anisio Teixeira defendia uma idéia muito aberta do que deveria ser uma universidade, revelando grande influência do modelo flexneriano. Isso transparece na Exposição de Motivos do Projeto de Lei que instituiu a Universidade de Brasília, enviado por Juscelino Kubitschek ao Congresso Nacional em 21 de abril de 1960.

Excerto do item 12: “Propõe-se uma estrutura nova da formação universitário, para dar-lhe unidade orgânica e eficiência maior. O aluno que vem do curso médio não ingressará diretamente nos cursos superiores profissionais. Prosseguirá sua preparação científica e cultural em institutos de pesquisa e de ensino, dedicados às ciências fundamentais. Nesses órgãos universitários, que não pertencem a nenhuma Faculdade, mas servem a todas elas, o aluno buscará, mediante opção, conhecimentos básicos indispensáveis ao curso profissional que tiver em vista prosseguir.” (Presidente da Comissão: Anísio Teixeira, relator: Darci Ribeiro.)

Assim, a UnB já nascia sem a cátedra vitalícia, organizada em centros por grandes áreas do conhecimento e com programas de formação baseados em ciclos iniciais de estudos gerais. Infelizmente, o regime militar que tomou o poder depois do golpe de 1964, entre suas primeiras medidas, ocupou militarmente a UnB, destituiu e exilou Anísio Teixeira, então Reitor, e decretou uma intervenção na instituição que culminou com a demissão da maioria dos docentes e pesquisadores (Salmeron 1998). Apesar de ter sido a única universidade brasileira de porte em que, em sua proposta original, não pretendia emular a universidade européia como modelo ideal, submetida à intervenção militar, a UnB terminou acomodando-se à estrutura administrativa e curricular vigente no país.

O governo militar que assumiu o poder com o golpe de 1964 decidiu adotar nacionalmente uma cópia empobrecida do sistema americano de educação superior. Um acordo entre o Ministério da Educação e a USAID foi firmado em 1967 com a finalidade de introduzir uma reforma universitária em nossa estrutura acadêmica, financiada por empréstimos do FMI e do BID. A reforma encontrou dois focos de resistência: boicote pela oligarquia conservadora no interior da estrutura da universidade e reação dos movimentos estudantis de esquerda, que organizaram mega-passeatas de rua em 1968.

A Reforma Universitária de 1968 (objeto da Lei nº. 5.540/68) ao invés de representar um novo paradigma para a educação superior no Brasil, foi bastante incompleta e resultou em um tipo de estrutura de gestão mista, produzindo um sistema de formação incongruente. Por um lado, uma versão mal adaptada do sistema anglo-saxão de departamentos foi sobreposta ao sistema franco-alemão da cátedra vitalícia, sem todavia erradicá-lo, sem qualquer forma de controle institucional e social nem mecanismos de avaliação de qualidade acadêmica.

Por outro lado, foi incorporado à nossa arquitetura acadêmica o que nos Estados Unidos é, em parte, formação profissional (os mestrados), interpretando-a de modo distorcido como formação de pós-graduação, sem remover o sistema anterior de ensino de graduação profissionalizante inspirado no modelo francês. Nesse caso, criamos um título universitário terminal chamado Mestrado, como uma espécie de licenciatura para a docência na educação superior, além de uma formação especial de pesquisador chamada Doutorado. Mais do que incompleta, a Reforma Universitária de 1968 foi nociva em sua resultante final, pois conseguiu manter o que de pior havia no velho regime e trouxe o que havia de menos interessante no já testado modelo estadunidense.

Não obstante, algo positivo resultou desse esforço de reestruturação da educação universitária no Brasil. Nos anos 1970, uma rede institucional de pós-graduação foi gradualmente implantada, viabilizando programas credenciados de qualificação docente e pesquisa. Além disso, o Ministério de Educação estabeleceu um comitê nacional para credenciamento de programas de pós-graduação vinculados à CAPES que eventualmente se tornou um sistema bastante eficiente de avaliação pública da instituição universitária. Em paralelo, algumas agências de apoio patrocinadas pelo governo federal foram preparadas para apoiar a recém-nascida rede universitária de laboratórios de pesquisa. Estas agências – sendo a mais proeminente o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) – também concediam bolsas de estudo, de capacitação e pesquisa que permitiram estudantes e pesquisadores levar a cabo seus projetos, junto com um sistema permanente de avaliação de desempenho.

Durante a redemocratização do Brasil (1981-1988), o sistema universitário público do país sofreu muito com a crise econômica que se abateu sobre a América Latina e com a crise política paralela ao processo de abertura democrática. Em especial para o sistema federal de educação superior, foram anos de sub-financiamento, caos administrativo, crise de autoridade, desvalorização social, manifestos em longas, freqüentes e frustrantes greves de estudantes, docentes e servidores.

Em 1985, ocorreu uma tentativa lúcida, porém inócua, de se realizar uma reforma universitária capaz de corrigir os equívocos da Reforma de 1969. O governo Sarney instituiu a Comissão Nacional para Reformulação da Educação Superior, incorporando segmentos outrora excluídos do debate político-institucional (UNE, ANDES e FASUBRA), criada com o objetivo ambicioso de fornecer subsídios para uma nova política de educação superior apresentando “propostas que pudessem ser imediatamente consideradas”. Após sete meses de trabalho, a Comissão apresentou seu Relatório Final, lançado solenemente em cadeia nacional de TV, impresso em larga escala pelo MEC e distribuído às universidades. Dentre as propostas, havia uma política de financiamento por meio de vinculação orçamentária (nunca viabilizada), normas de avaliação de desempenho (depois recuperadas pelo MEC), modificações nas carreiras docentes (objeto de negociações das greves) e um conceito dúbio e vago de autonomia universitária, que certamente subsidiou o capítulo pertinente da Constituição de 1988. O Ministério da Educação recebeu as propostas da Comissão, porém nenhum projeto de lei chegou a ser encaminhado ao Congresso Nacional. A única conseqüência prática da iniciativa foi uma modificação substancial da composição do Conselho Federal de Educação, posteriormente realizada no Governo Itamar Franco.

Nos anos 1990, já sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso, houve incrementos na capacidade global da rede de educação superior devido a um processo radical de desregulamentação que abriu o sistema para investimentos privados locais. Isto permitiu o crescimento avassalador de instituições de educação superior privadas. Porém, tal expansão em número de vagas não se associou diretamente à melhor qualidade de ensino.

Apesar da inédita estabilidade no Ministério da Educação, com oito anos de mandato do Ministro Paulo Renato de Souza, os temas da reforma da educação superior se fizeram presentes mais na retórica governamental do que em iniciativas concretas. Entre 1995 e 2000, o MEC divulgou uma série de documentos oficiais elaborados por equipes técnicas internas, sem maior ampliação dos debates. Nesses textos, esboçavam-se propostas de desregulamentação do setor privado e reestruturação da universidade pública, legislando sobre autonomia universitária e governança das instituições federais de ensino superior.

No plano concreto, visando a implantar sua proposta de autonomia universitária, o governo FHC lançou mão de vários instrumentos jurídicos. Apoiou técnica e politicamente a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, aprovada em dezembro de 1996 (Lei n° 9.394/96). Atuando diretamente, o MEC conseguiu aprovar a Lei n° 9.192/95 (que regulamentou o processo de escolha dos dirigentes das IFES) e o exame de final de curso para os alunos de graduação (ENC), além de decretos, portarias e instruções normativas e propostas destinadas a regulamentar a autonomia universitária das instituições federais.

Com o Governo Lula, o tema Reforma Universitária voltou à pauta de discussões, tornando-se uma das metas do Ministério da Educação para o quadriênio. Após três anos de debates e várias versões preliminares, em agosto de 2006, finalmente o Governo Federal encaminhou à Casa Civil o Projeto de Lei da Reforma da Educação Superior. Vários temas incluídos no PL 2006, tecnicamente, configuram mais uma proposta de reestruturação administrativa de instituições de educação superior e do marco jurídico do MEC. Dentre eles, destacam-se: ente jurídico; estrutura institucional; controle interno; marco regulatório; sistema de financiamento. Apesar dos avanços, os seguintes pontos precisam ser incluídos na atual Reforma da Educação Superior, por indicarem flagrantes omissões ou pontos débeis na proposta em estudo no Congresso Nacional:

Integração Graduação e Pós-Graduação;

Articulação Ensino/Pesquisa/Extensão;

Autonomia administrativa e financeira;

Arquitetura acadêmica.

Este último item representa importante lacuna no PL da Reforma, justificando largamente propostas de reestruturação da arquitetura curricular da educação superior no Brasil, cuja atual estrutura curricular, na América do Sul (e no Brasil em particular), resulta de:

a) Uma concepção fragmentadora do conhecimento, alienada da complexidade dos problemas da natureza, da sociedade, da história e da subjetividade;

b) Modelos de formação baseados nas universidades européias do século XIX, totalmente superados em seus contextos de origem;

c) Reformas universitárias incompletas (ou frustradas), impostas pelos governos militares nas décadas de 1960-1970 e absorvidas pelas elites nacionais;

d) Um período de laissez faire, com abertura de mercado e desregulamentação da educação superior nos anos 1980-1990.

Tais fatores tornaram vigentes, nos diversos países latino-americanos (e no Brasil em especial), arquiteturas curriculares bastante diversificadas, caracterizadas por múltiplas titulações, produzidas por meio de programas de formação com reduzido grau de inter-articulação. A seguinte lista ilustra, porém não esgota, o profuso sistema de títulos ora vigente:

 Licenciatura;

 Bacharelado;

 Denominações profissionais específicas (p. ex. médico, dentista)

 Diploma de tecnólogo;

 Especialização (senso-lato);

 Mestrado (acadêmico e profissional);

 Doutorado.

A arquitetura acadêmica vigente no Brasil (ver Figura 3), além de incorporar tal profusão terminológica, evidencia sérios problemas de articulação. Pode-se identificar, nesse modelo de estrutura curricular, a seguinte série (não-exaustiva) de problemas a superar:

1. Excessiva precocidade nas escolhas de carreira profissional;

2. Seleção limitada, pontual e “traumática” para ingresso na graduação;

3. Elitização da educação universitária;

4. Viés monodisciplinar na graduação, com currículos estreitos e bitolados;

5. Enorme fosso entre graduação e pós-graduação;

6. Programas de ações afirmativas com data de validade;

7. Incompatibilidade quase completa com modelos de arquitetura acadêmica vigentes em outras realidades universitárias, especialmente de países desenvolvidos, conforme revisado antes.

De fato, no Brasil, os jovens tomam a decisão de carreira profissional de nível universitário muito cedo, aos 16 ou 17 anos. O ingresso direto aos cursos profissionais através de um exame como o vestibular, desenhado para selecionar alunos portadores de conhecimento (ou memorizadores de informações), permite à universidade, de certa forma, se desresponsabilizar pela formação básica desses alunos. Esse é um modelo que foi usado na França, depois da reforma da educação de Napoleão III em meados do Século XIX, com a implantação de um fortíssimo núcleo de educação preparatória chamado Licée, equivalente ao Ensino Médio brasileiro. Nos diversos sistemas universitários europeus, os alunos também tinham uma formação prévia de base humanística muito elitizada. Na mistura de modelos acadêmicos de nossa educação superior, esse período de formação geral foi perdido. Não mantivemos a formação geral do Liceu, nem conseguimos realizar uma reforma universitária que tenha logrado trazer para dentro da universidade a necessária formação humanística.

Se, nesse momento crucial da globalização, não aproveitarmos a chance de criar um novo sistema de educação universitária e articulá-lo com o que é dominante no mundo, o Brasil vai ficar isolado no que se refere a formação profissional, científica e cultural. Se não transformarmos radicalmente nosso modelo de educação superior, seremos, em 2010, o único país com algum grau de desenvolvimento industrial ainda com um sistema de educação universitária do século XIX. Como todos os outros já se encontram no século XXI, isso será insuportável para a manutenção do desenvolvimento do nosso país.

Em suma, qualquer proposta de uma nova estrutura acadêmica para a Universidade brasileira deve buscar superar os problemas apontados, resultando em um modelo capaz de integrar os diversos sistemas de títulos existentes. Tal proposta será de preferência compatível com modelos vigentes nos espaços universitários internacionais, sem, no entanto, significar submissão a nenhum deles.