Um modelo de ensino excludente (11/07/2005)
Sinéia Coelho
Educação a distância, inclusão digital e novas tecnologias foram alguns assuntos abordados durante a entrevista que o professor e doutor Roberto Aparici concedeu à Folha Dirigida. Aparici, que também é diretor do Mestrado de Novas Tecnologias da Informação e Comunicação da Universidade Nacional de Educação a Distância (Uned) da Espanha, também alertou para a necessidade de um projeto de educação que atenda o maior número de pessoas, sob o risco de o país ser novamente colonizado, "mas desta vez através do ensino". Ele destacou que o sistema educacional brasileiro é excludente, permite o acesso de estudantes das classes A e B nas instituições públicas de ensino superior, enquanto os filhos dos operários raramente conseguem chegar à universidade. Entre as sugestões para mudar o atual cenário do país e possibilitar seu desenvolvimento, ele recomenda um forte projeto de educação a distancia e a reconstrução de uma nova forma de trabalhar a educação.
FOLHA DIRIGIDA - Com sua experiência em uma universidade pública de educação a distância, como é implantar projetos dessa natureza em um país com a extensão do Brasil e com a diversidade que existe aqui?
Roberto Aparici - O Brasil precisa de uma estrutura de ensino a distância justamente pelo seu tamanho que é quase um continente. Pode ser implantado numa universidade federal como a Ufba, ou estadual como a Uneb, por exemplo. Isto é possível porque eu trabalho na Universidade Nacional de Educação a Distancia (Uned), na Espanha. É uma universidade pública, criada em 1973, e possui cerca de 200 mil alunos. Todos estudando a distância e a titulação que se dá é a mesma das instituições presenciais. Acho que temos que pensar que no futuro o ensino não será mais presencial. O Brasil tem que conectar a idéia de educação à democracia.
FOLHA DIRIGIDA - O senhor acha que o Brasil, um país que não consegue proporcionar uma educação convencional de qualidade, conseguirá implantar projetos de ensino a distância de qualidade?
Roberto Aparici - No Brasil não é só melhorar o ensino, é necessário revolucionar a educação e o ensino a distância no Brasil é muito urgente por diferentes razões. Uma delas é para que muitas pessoas tenham acesso à universidade. O ensino a distância surge da necessidade de se criar uma universidade para todos e todas. Então é a universidade da segunda oportunidade, não querendo dizer com isso que seja de segunda em relação à qualidade. É uma universidade que permite o acesso daqueles que não puderam estudar quando jovens. Pode com isso melhorar a qualidade de vida e de emprego dessas pessoas. O ensino a distância pode ser de muita qualidade. Mestrado de Novas Tecnologias da Informação e Comunicação da Universidade Nacional de Educação a Distância (Uned) da Espanha, Tudo vai depender do projeto de educação proposto, tanto na presencial quanto a distância.
FOLHA DIRIGIDA - Quais os fatores necessários para a um ensino a distância de qualidade?
Roberto Aparici - Necessita de uma formação específica dos professores para trabalhar com esta modalidade de ensino, precisa de estrutura e de decisões políticas bem objetivas neste sentido, planejar quais são as necessidades do país nos próximos cinco anos, dez anos, vinte anos, quantos alunos serão atendidos, porque o Brasil precisa atender milhões de alunos. Com este ensino antidemocrático, a maioria das pessoas não teve acesso à educação. Eu fiz uma entrevista com vários filhos de operários que responderam ter vontade de estudar, mas não podem. Então, o que faz o governo do Brasil para isto? O que faz o governo da Bahia? É preciso atender estes jovens para que o futuro do Brasil possa mudar. Outra razão para desenvolver um projeto de ensino a distancia no Brasil é a invasão que poderá acontecer no país se ele não se voltar para a educação.
FOLHA DIRIGIDA - Como assim?
Roberto Aparici - Se o Brasil não desenvolver um projeto específico para a educação, o país vai receber uma nova forma de conquista, de colonização. Antes foi através da violência, no século XX através dos bancos, da telefonia e o próximo passo é através do ensino. O país não está cuidando do patrimônio da identidade nacional. Para que isso não aconteça, acho urgente a implantação do ensino a distancia para atender a maioria das pessoas. E isto pode ser feito a partir das próprias universidades públicas (federais e estaduais). Elas podem desenvolver seus próprios projetos de educação a distância.
FOLHA DIRIGIDA - Estamos falando do ensino a distancia para o nível superior, mas o país ainda não combateu nem o analfabetismo.
Roberto Aparici - Vários tipos de programas podem ser desenvolvidos. Projetos destinados aos meios rurais, inclusive para capacitar os professores, por exemplo. Mas o problema do Brasil não é só o analfabetismo, além da necessidade de alfabetização, existe a questão de como mudar um país em desenvolvimento para um país desenvolvido. Sabemos que existem vários fatores, mas a educação é um dos que contribuem com esta mudança. E até agora o ensino aqui é para poucos e para poucas. É uma questão mais ampla. Como se pode trabalhar a justiça social se só as classes A e B podem ter acesso ao ensino de qualidade? Isto é um sistema que o próprio estado deveria mudar. A revolução da Europa, depois da Segunda Guerra Mundial, envolveu também o desenvolvimento do ensino. Um país muito pouco desenvolvido, até os anos 70, como a Espanha se desenvolveu a partir de projetos de ensino para todos e para todas. Então o ensino a distância é um ponto central, juntamente com a abertura de mais vagas no ensino presencial. Além disso, é preciso mudar a própria ideologia do ensino brasileiro, que ainda é muito conservadora e para muito poucos. Na Bahia, por exemplo, onde a maioria da população é negra, existe o apartheid. Os negros quase não têm acesso ao ensino superior. Eu acho que o próprio governo da Bahia deve procurar uma saída para não ficar sustentando um sistema de racismo invisível. Eu estou fazendo uma pesquisa para saber que trabalho fazem os afro-brasileiros e que trabalho fazem os brancos. Estou percebendo que os brancos têm o controle de tudo ou de quase tudo. Isto não é trabalhar pela justiça social.
FOLHA DIRIGIDA - A pesquisa está sendo realizada em Salvador? Como está sendo desenvolvida?
Roberto Aparici - Sim, é aqui. Numa pesquisa, observei 40 restaurantes. Deste total, 95% dos clientes eram brancos, já a maioria dos garçons eram negros. Fiz uma pesquisa nos ônibus e quase 90% dos passageiros são afro-brasileiros, quer dizer, não têm acesso a carro próprio. A outra foi feita em diferentes bairros da cidade e, entre os porteiros, a maioria é afro-brasileiro. Agora, quando vou às universidades, quase não existem afro-brasileiros. Nas grandes empresas também encontrei poucos negros. Então, em uma cidade onde aparentemente tudo vive bem, acontece o racismo velado, com pessoas que não têm acesso a quase nada. Embora não exista uma lei que proíba o acesso do negro nos locais, o preço não permite que eles freqüentem. E eu presenciei uma situação onde percebi que o sistema treina os próprios negros para discriminarem os negros. Estava em um ônibus e teve uma blitz. Acho que era o único branco, ou se tivesse mais, eram só dois. A polícia revistou todos os afro-brasileiros. Aí eu disse a eles que queria ter o mesmo tratamento e eles me perguntaram se eu queria ter problemas. A própria estrutura ideológica faz com que os negros lutem contra os negros. Porque a polícia também é formada por afro-brasileiros. Como eu sou branco, eles não fizeram nenhum controle. É um mundo de branco num estado negro. E isso acontece também no ensino.
FOLHA DIRIGIDA - Qual sua opinião sobre as cotas para negros nas instituições públicas?
Roberto Aparici - Eu acho que não é a solução, mas é um primeiro passo para mudar algumas coisas. Este resultado só poderá ser comprovado daqui a 10, 15 anos. Eu acho fraco o movimento negro na Bahia, porque como pode uma população de maioria negra não ter acesso a quase nada? Os piores empregos são para os negros, como acontece na Europa com os imigrantes. Eu acho que é necessário desenvolver políticas de justiça social dentro das universidades, nos jornais, na mídia, no governo da Bahia e no governo federal. Eu acho que a política pública de ensino é muito perversa e trabalha contra a cidadania.
FOLHA DIRIGIDA – Quais mudanças devem ser feitas no ensino brasileiro para atender as classes menos favorecidas da sociedade?
Roberto Aparici - Em primeiro lugar, eu acho que precisa mudar a idéia de educação que se tem no Brasil. Não é possível que uma universidade pública como a Ufba ou a UFMG não tenha no curso mais de 40 alunos, por exemplo. É necessário acrescentar este número de vagas. É muito difícil se tornar aluno de uma universidade pública no Brasil. Para mim, isto é uma política antidemocrática. Temos que ter a idéia de ensino e democracia.
FOLHA DIRIGIDA - Como fazer isto?
Roberto Aparici - É preciso mudar a ideologia dos professores que não querem ter em sala de aula mais do que 25, 30 alunos. Entender que uma universidade pública tem que receber muito mais alunos do que recebe. Não é possível que países pequenos como França, Alemanha e Espanha tenham mais alunos nas universidades públicas do que o Brasil, com maior número de habitantes. É necessário ter aulas de manhã, de tarde e de noite, com estes turnos definidos para aumentar o número de vagas e dar oportunidade aos alunos das classes mais baixas. Eu estive no México e Argentina e tem aula até meia noite. Os estudantes que trabalham podem assistir aulas à noite. Eu acho insustentável que alunos das classes A e B aqui sejam alunos das universidades públicas enquanto alunos da classes média e baixa sejam alunos das instituições privadas. Eu acho um sistema perverso, antidemocrático, que no Brasil é quase impossível um filho de um operário ser universitário. Não pode ser que um país com a potência do Brasil não desenvolva um programa de ensino para todos. A universidade pública do Brasil é elitista. E, se a universidade pública continuar sendo para ricos, o país não vai mudar nos próximos anos. O Brasil tem que entender que o ensino é um dos passos para o desenvolvimento de um país.
FOLHA DIRIGIDA - É possível acontecer a inclusão digital antes de acontecer a inclusão social, ou as duas coisas estão relacionadas?
Roberto Aparici - As duas coisas estão relacionadas. Uma pesquisa que estou fazendo na Ufba comprova esta possibilidade. A Faced (Faculdade de Educação da Ufba) desenvolveu o projeto de tabuleiros digitais, e quem acessa são os afro-brasileiros, quase 90%. Isto quer dizer que a maioria dos brancos já tem este acesso e quem não tem são os excluídos sociais.
FOLHA DIRIGIDA - E como deve ser esta inclusão digital?
Roberto Aparici - É muito mais amplo do que ensinar a utilizar o teclado ou o mouse, como acontecia no século XX, nos anos 50, quando ensinava as secretárias escreverem à máquina. É entender que as novas formas de emprego, as novas formas de tecnologia, o desenvolvimento estão conectados com o mundo digital. Então é ensinar a utilizar todos os recursos disponíveis, ensinando o uso do mundo digital e suas transformações, e como pode melhorar a qualidade de vida no futuro. A matéria prima da sociedade digital é a informação, mas seu país não pode produzir informação própria, nem conhecimento, se trabalhar apenas com matéria-prima ou só com uma sociedade industrial. Isto era no século XIX e XX. Então para se conectar com o século XXI o trabalho de inclusão digital vem para melhorar o emprego, melhorar a qualidade de vida.
FOLHA DIRIGIDA - Como as novas tecnologias podem contribuir na educação convencional?
Roberto Aparici - Eu acho que o ensino presencial a cada dia necessita mais das tecnologias digitais. Uma aula convencional tem que estar conectada com o que acontece no cotidiano do aluno e na vida do planeta. A cada dia o presencial vai estar no espaço digital, para acessar a informação, para estar em contato com outras realidades, para estabelecer uma discussão com outro estado. Para isso, não é necessário que cada aula tenha 40 computadores, pode ter um, mas fazer o uso para todos os alunos.
FOLHA DIRIGIDA - Como seria esta aula com um único computador para 40 alunos?
Roberto Aparici - Pode organizar uma aula em grupos e, cada grupo, quando necessário acessaria o computador. Eu acho muito antiga a idéia de pensar na aula dos computadores. Tem que utilizar metodologias onde o trabalho seja colaborativo, que se discutam, porque não cabe mais a idéia do professor transmissor do conhecimento, que estudava em sua casa e chegando na escola passava a lição que estava no próprio livro.
FOLHA DIRIGIDA - O que é preciso para fazer esta mudança?
Roberto Aparici - Primeiro deve acabar com a idéia do professor ou professora de usar o poder para controle da aula. Tem que desenvolver uma metodologia democrática, que se compartilhe com os alunos e alunas o poder. Para que todos e todas possam ter acesso ao conhecimento, às tecnologias. Onde o novo papel do professor e da professora seja de mediadores deste conhecimento e não transmissores. E que todos os alunos e alunas tenham a possibilidade de acesso a tudo.
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MoisesGwannael - 13 Jul 2005