Um Tempo no Exilio
O fato de ser posto em liberdade não lhe oferecia o mínimo de segurança de poder retomar seu trabalho de educador e filósofo da educação, sem a constante ameaça de voltar a ser preso. O Programa Nacional de Alfabetização fora extinto já no dia 14 de abril. Por duas vezes tinha sido forçado a viajar do Recife ao Rio de Janeiro para responder a inquérito policial-militar.Entretanto, resistia a sair do Brasil.
Partiu, então, para seu tempo de exílio: de setembro de 1964 a junho de 1980. Em uma rápida passagem pela Bolívia, o Embaixador se recusava a receber mais um asilado político. Vencida a barreira, durante sua permanência na Embaixada, no Rio de Janeiro, foi procurado pelo Diretor de um Departamento do Ministério da Educação da Bolívia, que o contratou para prestar assessoria no campo da educação, em particular da educação primária e de adultos. Saía do Brasil empregado. Entretanto, não suportou a altitude de La Paz.
Entre novembro de 1964 a abril de 1969 viveu em Santiago do Chile. Em 1992 escreveu, na Pedagogia da esperança (p. 35): “Cheguei ao Chile de corpo inteiro. Paixão, saudade, tristeza, esperança, desejo, sonhos rasgados, mas não desfeitos, ofensas, saberes acumulados, nas tramas inúmeras vividas, disponibilidade à vida, temores, receios, dúvidas, vontade de viver e de amar. Esperança, sobretudo.”
Em Santiago, o reencontro com a família – Elza e os filhos, chegados em meados de janeiro de 1965 – possibilitou viver uma nova experiência, novas aprendizagens resultariam e, ao mesmo tempo, seriam o início de uma das linhas de força que marcariam sua história de vida. No Chile, respirou um certo clima de Brasil, o encontro e a aproximação com intelectuais brasileiros igualmente exilados: Plínio Arruda Sampaio, Ernani Maria Fiori, Álvaro Vieira Pinto, Francisco Weffort, Fernando Henrique e Ruth Cardoso, Thiago de Mello, entre outros. Certamente, não havia entre eles unidade de pensamento nem ali estavam levados por motivos idênticos.
Em Santiago retomou o fio de sua prática pedagógica, de inicio, como assessor de Jacques Chonchol, Presidente do Institututo de Desarrollo Agropecuario (INDAP). Posteriormente, na condição de consultor da UNESCO, atuando no Instituto de Capacitación y Investigación de la Reforma Agrária (ICIRA).
No Chile escreveu seu primeiro livro publicado comercialmente: Educação como prática da liberdade, “uma revisão ampliada” de Educação e atualidade brasileira, a tese com que concorreu à cátedra de História e Filosofia da Educação, na Escola de Belas Artes da Universidade do Recife. Os originais em português da, Pedagogia do Oprimido, foram igualmente escritos no Chile, entre 1967 e 1868 e seriam publicados pela primeira vez em 1970: em inglês, nos Estados Unidos da América (Pedagogy of the oppresed), Nova York, Herder and Herder, e em português, com importante prefácio de Ernani Maria Fiori, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra (Cf. Gadotti, M., Organizador, 1996, p.262).
No Chile, foram ainda escritos alguns dos livros de Paulo Freire: Educação e conscientização: extensionsimo rural (em colaboração com Ernani Maria Fiori, José Luiz Fiori e Raul Veloso Farias), CIDOC, Cuernavaca, México, 1968; Contibución al proceso de conscientización del hombre en América Latina, Montevidéu, 1968; Acción cultural para la lidertad, ICIRA, Santiago, 1968; Extensión o comunicación? La conscientización en el medio rural, ICIRA, Santiago, 1969 (Cf. Gadotti, M., Organizador, 1996, p.260-62). Esses livros davam forma a seu discurso no Recife, inclusive ao discurso-base do “método Paulo Freire” e anunciavam sua obra prima: a Pedagogia do oprimido.
Do Chile saiu pela primeira vez em 1966, para realizar conferências e participar de seminários no México, Cuernavaca, onde reencontrou Ivan Ilich, que conhecera no Recife, no início dos anos 60, e estabeleceu um bom relacionamento com Erich Fromm. Em 1967 fez sua primeira visita aos Estados Unidos da América, a convite de seis Universidades norte-americanas.. Voltaria aos Estados Unidos, ainda em seu tempo de exílio, para uma permanência mais longa, de abril de 1969 a fevereiro de 1970, em Harvard e, não simultaneamente, em um Centro de Pesquisa, orientado “no sentido de uma compreensão crítica do desenvolvimento” (Freire, P. e Guimarães, S. 2000, p. 76-78).
A saída para os Estados Unidos foi uma decisão que envolveu toda a família. Em 1969 Madalena já havia casado e estava morando no Brasil. Em 1970 tinha vários convites: continuar nos Estados Unidos por mais três anos (possibilidade que agradava a Elza), Canadá, Genebra (Conselho Mundial das Igrejas).
Amava e era grato ao Chile. De outra parte, algumas dificuldades começaram a surgir no Chile: boatos, que considera “de um ridículo enorme”, de que “teria escrito um livro violentíssimo contra a democracia cristã como um todo, mas sobretudo contra a pessoa do Presidente Frei, que era um homem de bem”. Acrescenta em depoimento a Sérgio Guimarães (Freire, P. e Guimarães, S. 1987, p.107): “Não quis ser saído de novo”.
Além disso, de acordo com informação de Almeri Bezerra de Melo (2001, p. 28), Paulo Freire, que não se adaptara à altitude na Bolívia, agora enfrentava um maior obstáculo no Chile: os terremotos. “Acho que tudo pode me faltar na vida; daria um jeito. Mas, o chão, isso não! Quero sair dessa terra.” Diante disso, declara Almeri Bezerra ter ido a Genebra, acompanhado do presidente e do secretário executivo do Centro de Documentação da Igreja Pós-conciliar. Propuseram e foram acatados pelo Conselho Mundial das Igrejas, que enviou a Paulo uma carta convite para prestar algo como uma consultoria especial ao Departamento de Educação do Conselho. Diz Almeri, no mesmo local: “ele viria para as margens do Lago Leman, onde não há terremotos; teria uma sala com secretária, a biblioteca da instituição, uma digna ajuda de custos e tempo para estudar e aprofundar suas idéias...”
Durante 10 anos, de fevereiro de 1970 a junho de 1980, Freire encontrou em Genebra, no Conselho Mundial das Igrejas, endereço estável. Professor na Universidade de Genebra, com liberdade para desenvolver experiências fora da Suíça, Paulo Freire partiu para o mundo (sempre retornando a Genebra). Fez-se presente com sua palavra e ação na Ásia, Oceania, América e, sobretudo, na África de língua portuguesa (Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau). A partir de Genebra, Paulo Freire projetou-se na história da educação no século XX como um cidadão do mundo. Amadureceu afetiva e intelectualmente, a partir dos desafios vivenciados em diferentes culturas. No Conselho Mundial das Igrejas, confessa: “Eu nunca talvez tenha sido tão livre!” O mesmo diria, de modo mais incisivo, em uma entrevista a Tempo e presença (1979, citada por Faundez, 1996, p. 190): “E se você me pede para testemunhar, enquanto cristão, católico de formação, direi que jamais, em toda a minha vida, me senti tão livre, quanto no período que trabalhei no Conselho Mundial das Igrejas. E deve-se convir que eu trabalhei em muitos outros lugares.”
A expansão de suas atividades fora de Genebra foi facilitada pela criação do Instituto de Ação Participativa (IDAC), fundado em 1971, em Genebra, por Paulo Freire juntamente com outros exilados brasileiros (Claudius Ceccon, Miguel e Rosiska Darcy de Oliveira). O IDAC levou Paulo Freire e o grupo que com ele atuava em Genebra a Cabo Verde, Angola, Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau. O projeto de assessoria a Guiné-Bissau se alongou por cinco anos (Ceccon, C. 1996, p. 214). Sem dúvida, como observa Faundez (1996, p. 190): “Todos os que conhecem o pensamento e a prática educativa de Paulo Freire sabem que os anos 70 foram o período mais profundo e mais rico de sua práxis pedagógica, sempre em contínua e constante evolução.”
Com a perspectiva do retorno de Paulo Freire ao Brasil, em decorrência da anistia, a sede do IDAC foi transferida para o Rio de Janeiro e passou a ser um Centro de Estudos e Pesquisas Educacionais, cujo principal objetivo “é a divulgação das obras e do pensamento de Paulo Freire” (Gadotti, M., Org., 1996, p. 682).
Paulo Freire tinha 43 anos de idade quando partiu para o exílio. Retornou quase 16 anos após. Em junho de 1979 obtivera seu primeiro passaporte brasileiro. Passou o mês de agosto no Brasil. Mas, somente no ano seguinte voltaria para ficar. Chegava com o desejo de “reaprender o Brasil”, como em 1964 falara de “aprender o Chile”.
Apesar do muito que ensinou ao mundo, que aprendeu do mundo, jamais perdeu os vínculos afetivos e culturais com o Brasil, o nordeste brasileiro, o Recife. “Antes de ser cidadão do mundo”, repetiu várias vezes, “sou um cidadão do Brasil.” Jamais perdeu sua recifensidade.
O período do exílio foi duramente vivido. Assim escreveu na Pedagogia da esperança (Freire, P., 1992, p.35): “É difícil viver o exílio. Esperar a carta que se extraviou, e notícias do fato que não se deu. Esperar às vezes gente certa que chega, às vezes ir ao aeroporto simplesmente esperar, como se o verbo fosse intransitivo.” Mas, ao mesmo tempo, lhe proporcionou a oportunidade de consolidar seu pensamento.
Voltou com um novo aspecto: a barba, que começou a usar nos Estados Unidos, para se defender do frio. Mas, era o mesmo Paulo Freire, profundamente telúrico, antes de tudo, um pensador, um filósofo da educação, um educador e, por ser educador, um político.