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Um Tempo em São Paulo

São Paulo foi uma opção quase inevitável. Ninguém melhor do que Ana Maria Freire, para testemunhar (Freire, A. M. A., 1996, p. 44-45): “Condições políticas ainda difíceis”, decorrentes da Lei da Anistia, diz Ana Maria Freire, exigiam do antigo exilado, que pretendesse retomar suas antigas funções, requerer ao governo o estudo do seu caso. Requerimento pode ser deferido ou indeferido. Pode estabelecer restrições. Ainda que fosse deferido e sem restrições, seria uma condição inaceitável. “Por considerá-la ofensiva, recusou-se a aceitar tal exigência, tanto no caso da docência quanto no de técnico”, referente a suas atividades no antigo SEC.

Paulo Freire precisava do apoio institucional que lhe assegurasse uma base salarial justa, referência internacional e liberdade para atender aos inúmeros convites que, bem sabia, continuariam a vir dos Estados Unidos da América e de outras partes do mundo para ministrar cursos e conferências. Convites que, de fato, ocorreram, até o final de sua vida. Convites e convocações de Universidades e de outras entidades internacionais, que representavam justas honrarias, por tudo o que construíra e continuava construindo em prol da educação.

Só a morte o impediu de repetir de viva voz: “Se, de um lado a educação não é a alavanca das transformações sociais, de outro, estas não se fazem sem ela”.

De “viva voz”, no entanto, continuou insistindo na Pedagogia da Indignação, obra póstuma organizada por Ana Maria Araújo Freire: denúncia, anúncio, profecia, utopia e sonho (Freire, P., 2000, p.91).

Em São Paulo, encontrou as condições de trabalho e a liberdade de ação que não encontraria no Recife. “Devido a possibilidade aberta pela Lei da Anistia e pelo espírito democrático da Reitoria da PUC, pôde ficar para trabalhar, amar e criar em seu próprio país” (Freire, A M. A ., 1996, p. 44).

Além disso, de setembro de 1980 ao final do ano letivo de 1990, foi professor da UNICAMP. Entretanto, somente em 1985, a UNICAMP conferiu a Paulo Freire a condição de professor titular. Para tanto, o Reitor solicitou do Conselho Diretor um “parecer sobre Paulo Freire”: Rubem Alves foi o encarregado de faze-lo e elaborou um incisivo documento, transcrito por Ana Maria Araújo Freire em “A voz da esposa – A trajetória de Paulo Freire” (1996, p.44-45).

No mesmo ano de seu retorno ao Brasil, 1980, Paulo Freire decidiu, pela primeira vez, filiar-se a um Partido Político: o Partido dos Trabalhadores (PT), do qual foi um dos fundadores. Nos anos 50, certa frustração, diante das expectativas e do processo da redemocratização de 1945, não estimulara Paulo Freire a se envolver na política partidária. Nem mesmo durante os primeiros anos dos 60. Testemunha, no entanto, que por muitos anos sonhou com um Partido Político diferente. No “Manifesto à maneira de quem, saindo, fica”, Epílogo de Educação na Cidade (1991, p. 143), Paulo Freire confessa: “Esperei por mais de 40 anos que o PT fosse criado.” Ao tomar conhecimento da proposta de criação de um Partido dos Trabalhadores, ainda na Europa, já expressou sua adesão.

Se durante os anos 70, no Conselho Mundial das Igrejas e do Conselho Mundial das Igrejas para o mundo, Paulo Freire alcançou o período mais profundo e mais rico de sua práxis educativa, nas palavras de Antonio Faundez, as décadas seguintes, dos anos 80 e 90, não apenas o mantiveram andarilhando mundo afora mas, agora, também pelo Brasil. Se Freire realizou sua reaprendizagem do Brasil, uma releitura do Brasil, o Brasil fez uma redescoberta de Paulo Freire. De 1964 a 1980, nomes como os de Paulo Freire e Dom Helder Câmara, experiências pedagógicas como a do Movimento da Cultura Popular, a Campanha De Pé no Chão Também se Aprende a Ler, o Movimento de Educação de Base eram “protegidos” pela cultura do silêncio. As conseqüências são, ainda hoje, conhecidas: no Brasil: quantos cursos de Pedagogia têm nos seus currículos o estudo do pensamento de Paulo Freire?

Em outubro de 1986, Paulo foi surpreendido pela morte de Elza. É verdade que o estado de saúde de Elza inspirava cuidados. Era cardíaca. Usava um marcapasso.

A morte de Elza representou para Paulo uma perda muito difícil de absorver. Entretanto, compreendeu que era preciso viver. Fez a opção pela vida e pelo amor. No dia 27 de março de 1998 casou com Ana Maria Araújo. Ana Maria era, então, sua orientanda no curso de mestrado da PUC. Paulo a conhecera no Recife, filha de Aluízio Araújo, cujo papel havia sido tão decisivo em sua história, ao conceder-lhe, na condição de Diretor do Colégio Oswaldo Cruz, a bolsa que possibilitou a continuidade dos seus estudos.

De um belo depoimento de Mere Abramowicz (1996, p.201-04), envolvendo dois momentos da vida de Paulo, a perda de Elza (1986) e o encontro com Nita - Ana Maria Araújo – (1988). “1986 – É um processo lento e difícil. Eu só saio disso se eu sair. Eu não posso ser saído, puxado por alguém. Decidir que eu saio é romper. Decidir é ruptura. Ficar com o morto é a tendência. Ficar com o que está vivo, essa é a decisão! Em momentos como eu experimento agora, morre-se um pouco. Muito de mim ficou vivo. Tenho uma lealdade para com a minha sobrevivência.”

Ao receber o título de Doutor honoris causa na PUC de São Paulo: “1988 – Amei durante 42 anos intensamente! Elza morreu e eu não matei Elza em mim. Mas optei pela vida! É a única forma de viver e ser leal a Elza. Tive a coragem de casar, de amar outra vez! Vivi momentos de culpa ao olhar uma rosa bonita! Amando essa outra mulher encontrei o mundo! Quem não é capaz de amar tem que se rever. Dedico esse título à memória de uma e à vida da outra!”

De 01 de janeiro de 1989 a 27 de maio de 1991 Paulo Freire ocupou o cargo de Secretário da Educação da Cidade de São Paulo. Não era a primeira vez que ele exercia a administração de um organismo de natureza educacional. Na verdade, assim começara, no SESI, em Pernambuco. Em 1960, Germano Coelho (2002, p. 49), na condição de Diretor Executivo do Departamento de Documentação e Cultura (DDC), da Prefeitura do Recife, nomeou Paulo Freire para a Diretoria de Cultura da entidade. No Movimento de Cultura Popular, era ele o Diretor da Divisão de Pesquisa e, como tal, integrante do seu Conselho de Direção. No SEC (Serviço de Extensão Cultural), órgão por ele criado no quadro da então Universidade do Recife, era igualmente o Diretor. Em 1964, por ocasião do Golpe, Paulo Freire era o Coordenador do Programa Nacional de Alfabetização, instituído no MEC pelo Ministro Paulo de Tarso Santos.

A escolha do nome de Paulo Freire para a Secretaria de Educação do Município de São Paulo, pela Prefeita Luíza Erundina, foi “a opção mais lógica”, observam Moacir Gadotti e Carlos Alberto Torres (1995, p. 11-17): não apenas pelo fato de ser Paulo Freire o educador que era, mas por ser membro fundador do PT, integrar sua Comissão de Educação, ser o Presidente da Fundação Wilson Pinheiro, também do PT. Paulo aceitou o novo desafio, com a condição de permanecer como Secretário apenas durante os dois primeiros anos da gestão da Prefeita Luíza Erundina. Tinha o projeto de escrever outros livros, o que não seria possível enquanto estivesse envolvido com a engrenagem da administração pública. E considerava seus cursos, conferências, entrevistas debates e livros como tarefas prioritárias.

Tanto que Paulo Freire não foi (nem poderia ter sido) um executivo convencional. Nem sempre foi compreendido quando, percebendo que seria conveniente para o andamento das tarefas burocráticas, dar-se um tempo de lazer para refletir melhor. Interrompia suas atividades na Secretaria e, sem meias palavras, dizia: “vou ao cinema com minha mulher”.

A obra que resultou de seu tempo de Secretário, A Cidade na Educação, tampouco aborda o dia-a-dia da burocracia. Reúne dois conjuntos de entrevistas, concedidas, as primeiras, ao longo do ano de 1989, sob o título geral de “Educar para a liberdade numa metrópole contemporânea”, a periódicos brasileiros (Leia, Escola Nova, Psicologia – do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo) e estrangeiros (do Canadá e da Itália); ao Sindicato dos Trabalhadores do Ensino, de Minas Gerais; à Fundação para o Desenvolvimento do Oeste do Paraná. São, como são, em geral, as entrevistas de Paulo Freire, oportunidades de reflexões livres, ainda que um tema focal sirva de fio condutor do pensamento. Reflexões que nos conduzem a refletir também, sobre os déficits da educação brasileira; para mudar a cara da escola; desafio da administração municipal; alfabetização de jovens e adultos; história como possibilidade.

O segundo conjunto de entrevistas compreende um intercâmbio de reflexões e experiências com a Professora Ana Maria Saul e os Professores Moacir Gadotti e Carlos Alberto Torres.

No Epílogo que fecha o livro (Manifesto à maneira de quem, saindo, fica), escreve: “Não estou deixando a luta, mas mudando, simplesmente, de frente”.

Contribuiu, ainda, para a construção do Instituto Paulo Freire, de São Paulo, e a mais completa fonte bibliográfica para o estudo de sua história e do seu pensamento: Paulo Freire – uma biobibliografia, Organizada por Moacir Gadotti e Colaboradores (1996).

No dia 12 de abril de 1991, testemunha Moacir Gadotti (2001, p. 17), “Paulo Freire, numa reunião com educadores e amigos, lançou a idéia da criação do Instituto Paulo Freire. Seu desejo era encontrar uma forma de reunir pessoas e instituições do mundo todo que, movidas pela mesma utopia de uma educação como prática da liberdade pudessem refletir, trocar experiências, desenvolver práticas pedagógicas nas diferentes áreas do conhecimento que contribuíssem para a construção de um mundo com mais justiça social e solidariedade.”

Naquele ano, 1991, 19 de setembro, Paulo Freire completou 70 anos de idade. Este fato ensejou numerosos registros e homenagens, com ou sem sua presença, em várias partes do mundo. No Recife, sua Cidade, o Conselho Estadual de Educação e a Secretaria de Educação, Cultura e Esportes do Estado de Pernambuco promoveram, conjuntamente, uma afetuosa homenagem a seu filho, por vários títulos, ilustre: 70 anos de Paulo Freire no mundo.

No Manifesto à maneira de quem, saindo, fica, Paulo Freire declarou não estar abandonando a luta, mas “mudando de frente”. Talvez fosse mais exato, dizer: retornando à frente à qual dedicou o tempo mais substancial de sua vida – pensar e escrever seus sonhos e utopias. Sonhos e utopias que dariam corpo a obras que completariam, ao lado de Educação como prática da liberdade (1967) e Pedagogia do oprimido (1970), algumas das referências maiores para se compreender Paulo Freire: Pedagogia da esperança (1992), Cartas a Cristina (1994), À sombra desta mangueira (1995), e Pedagogia da autonomia (1997). E deixaria, simbolicamente, inconclusos, cartas e textos que seriam reunidos por Ana Maria Araújo Freire em um livro emblemático: Pedagogia da Indignação (2000). Na verdade, como escreveu Balduino Andreola, que a prefaciou, não se trata de uma obra póstuma. Penso que simboliza uma história não finalizada, mas que continua “se fazendo”. Não era uma frase de efeito, mas uma convicção profundamente arraigada, quando Paulo Freire dizia: “seguir-me é não me seguir; é reinventar-me.”

Nos anos 90, durante a gestão da Professora Silke Weber na Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco, Paulo Freire fez diversas visitas ao Recife e, também, ao Cabo de Santo Agostinho. Vinha, quase sempre, para falar aos professores e professoras de várias entidades, principalmente atuando em programas de alfabetização. Trabalhava, então, dando continuidade a vínculo que tinha raízes profissionais nos anos 50, ao lado de Maria Adozinda Monteiro Costa.

Em fevereiro de 1997, Paulo Freire fez sua última visita ao Recife. Veio a convite do SESI. Proferiu, então, uma palestra (Freire, P. 1997-b), a última entre nós, quando rememorou os dez anos em que trabalhou no SESI. Mais uma vez, repetiu: “mudar é difícil, mas é possível.”

Escreve Ana Maria Araújo Freire, na Pedagogia da indignação (Freire, P., 2000, p. 67-68) que, apesar de cansado, ainda em abril de1997, Paulo se encontrava intelectual e emocionalmente envolvido com o seu trabalho, com a educação. Lembra que, no dia 20, recebeu a visita de Germano Coelho e de sua filha, Verônica, e para eles leu as cartas pedagógicas que estava escrevendo. Germano e Verônica “foram as últimas pessoas que tiveram o privilégio de saber detalhes e de ouvir da própria voz do autor, trechos desse livro inacabado” (Pedagogia da indignação).

Dois dias após, 22 de abril de 1997, Paulo Freire proferiu, na PUC de São Paulo, sua última aula.

Nas palavras de Ana Maria, naquele último encontro com Paulo Freire, Germano Coelho e Verônica “testemunharam a energia emanada de sua indignação e de seu amor; a vontade de trabalhar e de participar, criticamente, da vida de seu país; e o gosto de viver que Paulo levou consigo na madrugada de 2 de maio de 1997.”

Paulo Freire morreu de infarto, aos 75 anos de idade.

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