A Clínica Psicossocial das Psicoses
por Marcus Vinícius de Oliveira Silva em
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| Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de Psicologia
Bahia |
LEV - Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental. |
As psicoses são tensas. Tensas para fora. Tensas para dentro. Registro de uma experiência subjetiva de
precários equilíbrios do sujeito, instabilizadora de sua presença no mundo social. O sujeito psicótico
vive o enigma da sua pertença como sócio da sociedade como uma produção subjetiva complexa,
tensa e, por vezes, dolorosa. A psicose também se apresenta como fonte de tensão para aqueles que
se dispõem a ocupar um lugar de cuidador diante dela.
A clínica das psicoses é uma clínica tensa. Tensa para dentro, fazendo importantes exigências
subjetivas para que seu agente possa estar bem situado diante de um sujeito que se movimenta em
precária estabilidade possibilitada pelo seu arranjo psíquico. Tensa para fora, exigindo que seu agente
disponha de habilidades de mediador, intermediário entre as necessidades sinalizadas pelo sujeito e
as exigências da cultura.
O ensino da clínica das psicoses é também tenso. Tenso para fora. Espaço de uma disputa teóricoconceitual
entre concepções que divergem sobre a sua natureza e sobre a priorização dos cuidados
que devem ser ensinados aos futuros profissionais. Tenso para dentro: como ensinar? Como aprender?
Como transmitir matéria que articula objetividade e subjetividade, num fazer que se situa nos limites
entre a técnica e a arte?
Os espaços institucionais de cuidado dos sujeitos psicóticos são tensos. Tensos para dentro, no manejo
dos settings que pretendem proteger (a quem?), isolar, excluir os sujeitos psicóticos e o agente de
cuidados no mundo reduzido das hospitalizações, das emergências e dos consultórios acéticos. Tensos
para fora, diante da exigência ética de uma clínica que se construa no território, ocupando a cidade
e fazendo circular as representações estagnadas sobre as potencialidades dos sujeitos atendidos.
In-tensa. Ex-tensa. Neste número, o PIC - Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos,
submete-se à revista. Prestamos contas de um ensino que se faz extra-muros, em que a universidade
executa extensão e pesquisa. Revela o vigor próprio da vida que existe fora das salas de aula
como um recurso de aprendizagem e para a produção de conhecimento. Ensino que articula a teoria
e a prática, prestando serviços à população e participando ativamente da disputa teórica e técnica
acerca dos conceitos que devem orientar a Reforma Psiquiátrica brasileira.
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Intensificação de cuidados versus internação hospitalar: dois projetos distintos em suas éticas, em
suas técnicas, suas formas de se transmitir. Intensificação de cuidados, esforço para identificar, decodificar
as necessidades dos sujeitos chamados psicóticos, para fazer segundo suas necessidades e não
segundo as possibilidades – sempre menores e mesquinhas – que geralmente conformam o conforto
das instituições e profissionais. Clínica que se faz onde o sujeito vive e habita, em seu domicílio e com
a sua “comunidade”: sua família e seus conhecidos, os sócios com os quais ele compartilha sua vida
social.
Articulando recursos diversos - Atenção Domiciliar, Acompanhamento Terapêutico, Coletivos de
Convivência, Redes Sociais, Suporte e Assessoria, Cuidados à Família, projetos, passeios, festas e uma
regra única: intensificar os cuidados humanos, realizando as ofertas compatíveis com as necessidades
dos sujeitos, assumindo as responsabilidades através de uma presença intensa e orientada.
Clínica Psicossocial. Resgatamos do limbo este conceito que, apesar de nomear o carro chefe da
nova institucionalização dos serviços territoriais - os CAPS - não parece estar merecendo maiores
atenções. Centro de Atenção Psicossocial, onde o signo em questão parece registrar apenas, sob
forma de junção, a urgência de se considerar uma certa dimensão expurgada – o social – das teorias
hegemônicas da clínica que fazem, no mesmo viés individualista, o triunfo do biológico e do psíquico.
Ilusão, pois fora da sociedade não existe sociedade. Todos os fatos psíquicos são fatos sociais. Não
existe sociedade humana que não se inscreva psiquicamente. Contra o que há que se afirmar: por uma
Clínica Integral das Psicoses. As demais não serão senão a sua redução.
Os artigos que fazem parte dessa coletânea têm o sabor da espontaneidade com que foram produzidos:
por absoluta necessidade dos estagiários darem conta das suas experiências e sem qualquer
exigência acadêmica que os obrigasse a isso – coisa rara e deliciosa para quem trabalha com a transmissão.
Tentativas de articular a marca de uma experiência forte, que tem como pressuposto a idéia
de que a psicose, ela própria, nos ensina.
Aprendizes de feiticeiros, os estagiários que participaram do nosso programa imprimem nos seus
escritos um pouco de sua técnica e sua arte: um desejo, uma coragem de viver assim tão próximos
deste encontro com a realidade delicada dos sujeitos atendidos, com uma cidade maltratada, com os
domicílios simples e muitas vezes precários, ruas, ruelas, becos, faltas e carências diversas, desorganização
social e psíquica, pobreza e desalento. Para desse mundo tão duro e doído, extraírem a riqueza
dos sons, cores, palavras, encontros que traduzem as emoções proporcionadas pela oportunidade
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de estarem vivendo a vida tal como ela é, fora das salas de aula e das proteções que, muitas vezes,
os mimam e os sedam. Cada um trouxe o que tinha e o que pôde aportar, o que lhe marcou no seu
encontro e enganchamento com a clínica da psicose. Resultado de uma transmissão que se fez.
Supervisores, patronos e cúmplices - Eduarda Mota e eu - cumprimos com satisfação a tarefa de coordená-
los e organizar essa possibilidade da sua expressão inaugural, contando cada um o que viveu.
De minha parte, incluo nessa publicação despretensiosamente alguns dos meus “artigos de crença”:
aulas e notas que expressam um esforço pessoal para cultivar a teoria como recurso generoso que,
distribuído, nos iguala e nivela na tarefa-obrigação de sustentarmos publicamente a explicitação do
que fazemos, o que ensinamos, por que o fazemos e por que o ensinamos.
Que a Clínica Psicossocial das Psicoses que juntos temos reinventado nesses quatro anos de existência
do nosso PIC possa nos trazer novas emoções e um próximo número. Que cada texto seja capaz
de falar em nome do seu autor.