Não há uma medicação que resolva o problema do uso abusivo de substâncias psicoativas, declara presidente do CFP
Em entrevista ao CETAD Observa, o presidente do Conselho Federal de Psicologia, Humberto Verona, defende o direito à cidadania dos usuários de drogas e alerta para os riscos e eficácia de tratamentos com internação de longa duração.
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Conselho Federal de Psicologia (CFP) lançou na última semana o portal
Drogas e Cidadania, site que reúne artigos, reportagens, vídeos, entrevistas e recomendações do Conselho para profissionais da rede de atenção a usuários de álcool e outras drogas. Para o CFP, "não há saída para o sofrimento humano – seja este consequência da submissão do homem a um objeto químico ou não – fora da cidadania."
Entre a diversidade de informações que o site dispõe, o Conselho faz uma uma alerta à sociedade, através de manifesto "Pelo tratamento sem Segregação", contra algumas medidas e decisões que vão de encontro às orientações da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, como a internação compulsória de jovens e crianças usuárias de drogas e o fortalecimento de instituições de internação de longa duração.
Em entrevista ao CETAD Observa, o presidente do CFP, Humberto Verona, discorre sobre os modelos de atenção e tratamento a usuários de álcool e outras drogas no país, esclarece quanto a eficácia de medidas como a internação de usuários de substâncias psicoativas e reclama a priorização de investimentos para a implantação de equipamentos da rede pública de atenção, como os CAPSad 24 horas e Casas de Acolhimento Transitório (CAT).
Como o senhor avalia as ofertas de tratamento e de cura alternativas ao que é proposto pelo Sistema Único de Saúde para usuários dependentes de álcool e outras drogas no país?
Humberto Verona - Eu li a cartilha feita pelo Conselho Federal de Medicina, orientando a classe médica a respeito do tratamento para usuários de crack e a primeira coisa que chamou a atenção foi o reconhecimento de que não existe um medicamento ideal para dependência química de substâncias psicoativas. Existem medicamentos que são paliativos em alguns quadros como os de ansiedade, abstinência. Então, temos aí uma informação importante da própria medicina de que, na farmacologia, não há uma medicação que resolva o problema do uso abusivo de substâncias psicoativas. Se fosse uma questão meramente orgânica, já teríamos uma vacina ou medicação que livrasse o sujeito de qualquer relação com a substância.
Na verdade, estamos numa situação em que a questão da dependência, do uso abusivo, tem uma série de fatores outros que não podem ser desconsiderados. Quando estamos diante de propostas de tratamento e de prevenção que levam o sujeito para uma instituição fechada e que oferece ali uma oportunidade de cura, nós estamos diante de uma hipótese falsa, porque não existe lugar, nem medicamento e nem procedimento que dê conta de fazer com que este sujeito supere de forma definitiva a sua relação não muito saudável com a substância. É preciso que as políticas e as clínicas considerem que o sujeito tem que se haver com uma série de coisas na sua vida que é para além da substância psicoativa.
Como assim?
H. V. - A substância psicoativa é um elemento a mais no emaranhado da vida, na complexidade da vida do usuário. Isso é um aspecto importante que uma instituição de internação dificilmente levará em consideração, porque ela foca na dimensão biológica. As suas regras serão limitações para o sujeito, porque estas instituições acreditam ter somente na abstinência o único modo de resolver o problema da dependência. Obviamente que elas desenvolvem alguns recursos complementares, sobretudo os religiosos, além de alguns condicionamentos e terapias aversivas que levam o sujeito a ter repulsa à droga, mas sabemos que elas não têm sido eficazes ao longo da história.
E quais consequências medidas de internação, como a que ocorre no Rio de Janeiro, podem ter na vida dos usuários?
H. V. - A maioria das pessoas que já passaram por esse tipo de tratamento retornam sem recursos subjetivos, que são recursos desenvolvidos na sua própria estrutura para enfrentar os diversos lados que há na sua relação com as drogas. Então, ele aprende a ter somente como recursos a oração, a religião, a medicação e a tentativa de abstinência e, dependendo do sujeito, ele pode sucumbir a uma série de fatores outros que envolvem a sua vida, como o preconceito e à culpabilização em relação ao uso. Então,a situação se complica sem a potência, sem os recursos subjetivos que ele precisa ter para o enfrentamento do problema.
Quais aspectos diferenciam os cuidados propostos pela estratégia de Redução de Danos em comparação com os modelos hospitalocêntricos, como os Hospitais Psiquiátricos e as Comunidades Terapêuticas?
H. V. - A Redução de Danos trabalha com o diálogo, com a discussão sobre os problemas que envolvem o uso abusivo, a posição pessoal do sujeito em relação ao uso e isso tem sido muito mais positivo no sentido do resultado, pois dá à essa pessoa a capacidade de lidar com problema, com a sua relação com a substância. A partir daí, alguns se conscientizam do uso prejudicial, e conseguem fazer uma ponte para outras produções da vida sem o estigma e o preconceito.
No Hospital Psiquiátrico, o saber é médico, é o saber da ciência que vai fazer com que o sujeito sofra um processo de dessubjetivação, que será substituída por uma cega subalternização aos princípios que o especialista prescreverá. Não há essa relação com o sujeito, no sentido de empoderá-lo em seu próprio tratamento e na sua relação com a substância. Nas comunidades terapêuticas, por outro lado, o sujeito é um coitado e está na condição de vítima de um demônio, de um elemento externo, e que busca na religião a saída para livra-se desse elemento externo que ocupou a sua vida.
Qual seria o primeiro passo que o senhor recomendaria para aqueles profissionais que atuam na rede de atenção a usuários de álcool e outras drogas?
H. V. - Conversar com os usuários. Quando escutamos o sujeito, nos convencemos cada vez mais de que é a partir do empoderamento e do respeito a cada sujeito em sua singularidade e com os recursos que tem, que poderemos, enfim, descobrir recursos para enfrentar o que não está bem nessa relação. Consideramos este tratamento mais eficaz no sentido qualitativo, porque é um trabalho mais respeitoso e mais cidadão, uma vez que acredita no sujeito como alguém capaz de decidir pela sua vida, de fazer escolhas, ainda que ele esteja num momento de fragilidade e com poucos recursos para o enfrentamento de sua situação. Este modelo, dá a ela a chance de resgatar e buscar recursos sociais e pessoais, possibilitando mais chances para se fortalecer.
E quanto aos serviços públicos de atenção aos usuários de substâncias psicoativas?
H. V. - É necessário que tenha uma rede que atenda a cada momento do usuário em tratamento. É necessário que se tenha disponível um CAPSad 24 horas para um momento de crise, é necessário uma Casa de Acolhimento Transitório para um momento de recolhimento. Então, só construindo redes e buscando recursos na própria comunidade é que encontraremos uma solução, assim como está sendo feito atualmente com as pessoas com transtorno psíquico. Temos vivido experiências maravilhosas no Brasil e no mundo inteiro de resgate a esse público, mas infelizmente a política pública tem sofrido uma pressão interna e externa muito grande que a levou a atitudes impensadas e incoerentes com as propostas dos Sistemas Únicos de Saúde e de Assistência Social.
A RDC 29 da Anvisa seria uma dessas decisões?
H. V. - Isso. Essa seria uma delas. Os recursos que estão sendo programados para investir em comunidades terapêuticas, se fossem investidos na rede pública de atenção... Tem-se o argumento de que as famílias procuram os serviços públicos e que não encontram, então não há outra resposta se não dizer que se não tem é porque não foi implantado. Temos uma concepção respeitosa de rede que tem que ser implantada, com recursos do SUS, do SUAS, da venda de bens apreendidos de traficantes. Não se pode investir esses recursos em equipamentos que não são resolutivos, que diz respeito a interesses econômicos de alguns e que produzirão uma exclusão violenta, uma falsa impressão de que o problema da sociedade está sendo resolvido. Temos que aprender com as experiências que já tivemos, a experiência do SUS, tantas experiências que estão mostrando que há outras formas de cuidar. Não devemos insistir em velhas receitas que só produzem mais exclusão e mais doença.
Muito tem se referido à questão do crack no Brasil como uma situação de epidemia. O que o senhor pensa sobre isso?
H. V. - Não existem pesquisas que comprovem uma epidemia de crack no Brasil e no mundo. Parece que agora está sendo feita uma pesquisa pela Fiocruz no país inteiro, uma pesquisa séria e que estamos aguardando o resultado, mas não há nenhum indicador nesse momento que nos dê um diagnóstico de epidemia. A gente sabe que existe uma endemia de álcool no Brasil, uma droga lícita que tem trazido muitos problemas, mas não se discute sobre isso. Uma epidemia requer medidas rápidas, urgentes e pontuais. É um mal que tende e pode a atingir toda a sociedade, como a epidemia de dengue, por exemplo, Nós estamos vivendo isso em relação ao crack? Eu acho isso uma afirmação equivocada e, ao que tudo indica, a pesquisa da Fiocruz vai apontar que não estamos vivendo epidemia nenhuma. As pessoas resolveram por o foco sobre o uso de crack, mas o número de indivíduos que faz um uso prejudicial do crack é infinitamente menor que o das pessoas que usam álcool, por exemplo.
Poderíamos afirmar que a maioria das mortes relacionadas ao fenômeno das drogas se devem à ilegalidade do mercado destas substâncias?
H. V. - É verdade. A ilegalidade de certas substâncias tem matado mais pessoas e isso é real, porque cria um submundo. O mercado de substâncias ilícitas não está na lei, mas é real e tem crescido cada vez mais, ocupando mais espaço nas grandes cidades do mundo inteiro. A maioria das periferias das grandes cidades estão submetidas a conviver com um comércio que não é legalizado e uma situação dessas é extremamente violenta. Há uma falsa impressão que é passada para a sociedade, de que medidas estão sendo tomadas para acabar com o tráfico, mas sabemos que elas são, na verdade, algumas respostas que vem sendo dadas a pressões internacionais. Efetivamente, para resolver o problema, não estamos vendo nada de objetivo acontecendo e isso tem que ser colocado na pauta de discussão da sociedade.
O que o CFP tem feito para o enfrentamento desta questão?
H. V. - O CFP tem feito esse debate junto à categoria. Boa parte dos psicólogos que trabalham em comunidades terapêuticas nos dizem que se sentem limitados em sua capacidade de atuação e que a categoria tem que estar empenhada para fazer valer as políticas públicas destinadas a enfrentar o problema. O Conselho tem promovido debates, informações e ações como a publicação do manifesto e acredita que as discussões tem que ser feitas com igualdade, sem ameaça de violência, como aconteceu em relação à Marcha da Maconha, que é um coletivo que quer debater de forma aberta e democrática. O debate é feito num Estado laico e não deve se submeter a condições religiosas. Ele está posto e temos que tentar avançar um pouco nisso no Brasil.